Dar vida ao tempo
“Tenho, na verdade, os anos que me restam de vida, porque os já vividos não os tenho mais.”- Galileu Galilei
De cada vez que um ano acaba, além dos habituais votos de prosperidades para o ano que se inicia, somos pródigos a fazer uma lista de intenções do que queremos ver realizado, como se delineássemos o nosso futuro num calendário por cumprir. O que na maioria dos casos acontece é vermos essa lista encurtar, à medida que o ano avança, numa progressão inversamente proporcional ao número de desejos planeados. A mim, tem-me acontecido com frequência, e por mais juras anuais de que tudo será diferente estas esbarram contra a parede da intenção que se vai esboroando com a sucessão dos dias.
Por isso, neste ano de 2025, pela primeira vez, abstive-me de enumerar propósitos e fiquei-me pelo balanço do que no anterior não fiz. Achei que esse exercício de retroatividade me daria um retrato mais realista dos vazios por preencher e seria uma campainha alerta para as falhas que não gostaria de ver repetidas. Revelou-se bem mais proveitoso em termos de análise introspetiva, se bem que ainda seja cedo para avaliar da sua utilidade prática.
Ao olhar para o passado, enumero não o que ganhei, mas muito do que perdi, e posso assegurar que é apenas uma migalha do muito que gostaria de não ter perdido. Sempre por falta de tempo, fazendo dele o bode expiatório que tem de remir culpas alheias. E foi tanto o que perdi!
As visitas aos filhos que ficaram por fazer, porque nem sempre as viagens eram compatíveis com os intervalos, sempre escassos, entre os compromissos já assumidos. Os amigos a quem fui adiando telefonemas para, de um dia para o outro, ser confrontada com a sua irreparável perda. Os e-mails que não escrevi por achar que não eram pertinentes, não me dando conta de como uma simples palavra pode ser um bálsamo nas horas de solidão. As mensagens a que não respondi, por o momento não ser oportuno, para as deixar esquecidas na caixa do correio. Os inúmeros filmes a que não assisti, porque outro compromisso se interpunha entre as horas a que os mesmos decorriam. As peças de teatro que não vi porque os dias em que estavam em cena não se ajustavam à minha agenda já preenchida com atividades que não permitiam cancelamento ou troca. Os convites de convívios que recusei porque se prolongavam para além da minha janela temporal. Os livros acumulados que não li porque a leitura nos exige a capacidade de concentração que uma mente demasiado ocupada deixa de ter. A organização de dossiês e papéis, eternamente adiada, por ser uma tarefa que, depois de iniciada, exige rapidez na finalização. As horas de descanso que não cheguei a ter, porque algo se atravessava no caminho do ócio. As ementas que não preparei, atropeladas que foram pela lei do pragmatismo. As gavetas que não organizei, maldizendo o momento em que já não me lembrava onde havia guardado aquilo de que precisava. Os abraços que não foram dados por falta da minha comparência. As declarações de amor não ditas por terem ficado suspensas no estendal da espera. A falta do toque suave de uma mão que tateia as linhas da amizade. Os dias luminosos em que não senti o calor dos raios de sol, fechada que estava no meu habitáculo a finalizar textos com prazo marcado. O odor das flores do jardim que não perfumaram os meus dias de clausura.
No entanto, oiço, com frequência, pessoas dizerem que se entregam a esta ou aquela atividade para “matar o tempo”. Estranha forma de usar o verbo matar! Eu não preciso de “matar o tempo”, nem tenho “tempos mortos”. Pelo contrário, quero continuar a dar vida ao meu tempo para que me sobre tempo para a vida.
Aida Batista/MS
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