Aida Batista

Conversas à mesa

A liberdade é algo que as pessoas recebem, e as pessoas podem ser tão livres quanto quiserem. - James Baldwin, Ninguém sabe o meu nome.

Manhã cedo, rebentaram-me as águas, à mesma hora que as da tua irmã, como se a cumplicidade do vosso relógio biológico tivesse começado já dentro de mim. Também à mesma hora fui para o Sindicato. Hoje parece estranho, mas era assim que dizíamos: “Os meus filhos nasceram no Sindicato!”, porque era lá, no Sindicato dos Comerciantes de Benguela, que funcionava a maternidade privada.

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Créditos: DR

Quando teu pai ligou, algum tempo depois, disseram-lhe: Já cá tem um rapaz!  Foi como te anunciaram, num tempo em que só se sabia se era menina ou menino, pela leitura dos genitais. Teu pai duvidou, e repetiu o meu nome, para o caso de ter havido algum engano.

A tua irmã, ano e meio antes, como estava em posição pélvica, só nasceu após muitas e esforçadas horas de trabalho de parto. Face à experiência anterior, ele não acreditava na rapidez com que deixaste o aconchego do ventre, onde durante nove meses te aninharas.

Agora, pai também, conheces bem o desespero dos momentos de espera, e de como a ansiedade é sempre bem mais forte do que qualquer palavra com que vos queiram acalmar, porque a paternidade é surda a conselhos alheios.

– Vão roer as unhas para casa! – diziam os obstetras aos pais, com uma carga de ironia a tocar a fronteira do sarcasmo. Hoje, é-lhes permitido estarem presentes. A mãe pode sentir a força de um aperto de mão e fitar o olhar cúmplice que tanto confortam e animam. Tendo ambos sentido o desejo da conceção, podem, naquela hora, partilhar também o momento primeiro do ser a que deram vida. O nome pode já estar escolhido, mas o imaginado rosto, nenhuma ecografia o antecipara.

As mudanças, e tantas foram, traduzem a passagem do tempo, e depois de amanhã (25 de julho), fazes 52 anos. Olho para o número que acabei de escrever, e é surpreendente admitir que já vivemos mais de meio século desde que, cortado o cordão umbilical, o médico te colocou em cima da minha barriga vazia de ti.

Custa muito pensar que os nossos meninos – para uma mãe, os filhos serão sempre meninos – estão lentamente a aproximar-se da idade em que nos sentimos a envelhecer, e que, nesta imparável cadeia de transmissões, chegará a vez de ocuparem o nosso lugar.

Faço o balanço das colunas do “Deve” e do “Haver” da minha contabilidade biográfica, e espanto-me com o desequilíbrio entre uma e outra, porque o “Haver” em muito ultrapassou o superavit que esperava. De tudo, o mais importante foi ter tido o privilégio de te ver crescer com saúde, constituir família e alargá-la, em passo de corredor a passar o testemunho da chama, que não se apagará porque os teus filhos se encarregarão de lhe dar continuidade.

Foram anos de encontros e desencontros, de momentos muito felizes e de outros bem mais difíceis; de erros que eu poderia ter evitado, acaso nascesses com um manual de instruções. À falta dele, fiz da intuição a minha cartilha: umas vezes acertando, outras não, mas sempre com a certeza de que a uma mãe muito se perdoa.

Um dia em que estávamos todos à mesa (a mesa é o lugar onde se servem as melhores conversas), falávamos de episódios da vossa infância.  Os teus filhos riam-se, surpreendidos com a imaginação e a criatividade das vossas travessuras (tuas e da tua irmã). A determinada altura, tu disseste:

– A minha mãe? Quando eu era pequeno, a minha mãe era a minha grande paixão!

Arrependo-me de não te ter dito que esta fora a mais bonita declaração de amor que ouvira em toda a minha vida. E porque não o fiz naquele momento, quero que fique lavrada como uma escritura, e, com o mesmo amor, te declaro que, de todos os homens que passaram pela minha vida – pai, irmãos, maridos –, tu continuarás a ser a minha paixão maior, desde que o cordão da tua liberdade se desprendeu de mim.

Aida Batista/MS

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