Aida Batista

Construtores de ninhos em terra alheia

cropped view of couple holding nest with painted easter eggs on concrete surface

 

A minha vida são estas raízes de névoa e sobre as quais passo, sem pressa, farejando o mundo. Eduardo Bettencourt Pinto, in “A cor do Sul nos teus olhos”

 

 

Sempre afirmei que, no meu percurso profissional, há um Antes e Depois de Toronto. A missão de Leitora de Português na Universidade de Toronto continua a ser o marcador que determina a página a partir da qual, no livro da minha vida, se inscreve uma forma diferente de olhar o mundo, no que toca à nossa diáspora. Em 1998, vivi pela primeira vez a experiência de chegar a um país onde se podiam ver representações culturais dos mais variados grupos étnicos que, em liberdade e sem preconceito, afirmavam as suas origens. Entre eles, os portugueses, dispersos pelos vários “Little Portugal” por onde me fui movimentando.

Tendo o mar como fronteira, desde cedo percebemos que teríamos de passar outros Bojadores, para – além da dor da travessia, da separação e da ausência -, irmos em busca de um futuro promissor por terras e “mares nunca dantes navegados”.

Hoje, as histórias de vidas da emigração portuguesa (pesem embora alguns casos de fracassos) incorporam outra gesta, feita de sucessos dos que souberam superar a adversidade para darem “novos mundos” ao mundo das suas vidas circunscritas a pouco mais do que o perímetro de vizinhança das aldeias de pobreza e fome onde habitavam.

Estive presente na apresentação de um livro de poemas do açoriano João de Melo, “Longos Versos Longos”, e ouvi-o dizer: “Somos nove irmãos, mas apenas eu sou português”. A frase caiu com o estrondo de uma peça de chumbo no silêncio perplexo de um público mais alheio a estas realidades, mas logo percebemos que a emigração os tornara cidadãos de outros países. Esta afirmação pode ser proferida por quase todas as famílias que, de geração em geração, deram filhos aos caminhos que buscaram as Américas (a de cima e a de baixo, assim chamadas), para fugirem à miséria averbada no enxoval de nascimento.

No entanto, após um breve contacto, rapidamente se conclui que apenas vestiram a roupagem americana que os quotidianos do mercado laboral exigiam. Dentro de portas, nas suas casas, nas associações e clubes, continuaram a manter a alma das suas origens, mesmo que tenham já nascido em território americano. Convivem com as duas culturas, sem constrangimento algum, porque, nisto de amor aos lugares, o coração tem sempre espaço para mais um. E as raízes, passadas gerações, continuam a alimentar o tronco de onde, mais tarde, começaram a ganhar forma copas hifenizadas, numa urdidura de trocas que enriquece a mundividência das novas famílias.

Foi preciso dar o salto para um outro Portugal fora do mapa, para perceber que, tal como uma planta transplantada, o país soube acrescentar ao pedaço de raiz e caule iniciáticos todo um conjunto de ramos nascidos da interpretação de novos códigos, que lhes permitiu crescer à dimensão de quem os acolheu. Com os novos ramos, cada um fez o seu ninho, a que chamamos lar, por nele percorrermos o roteiro inconfundível das nossas rotinas e tatearmos às cegas o odor de todas as coisas e espaços.

“Os olhos das aves alcançam muito para além/do que vemos” é o verso primeiro de um poema de João de Melo. Ao lê-lo, não pude deixar de, imediatamente, estabelecer uma comparação entre o ninho de um pássaro e aquele de todos os emigrantes que, ao longo dos anos, foram construídos nas Américas onde se fixaram. E concluo que a memória que os sustém continua a ser a trave-mestra com que os fizeram, enquanto escutavam a canção de ninar do berço onde foram embalados.

Aida Batista/MS

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