Carta à minha filha
Fez ontem 22 anos que celebrámos o teu aniversário em Toronto.
Desde 1989, ano em que deixei o país para lecionar no estrangeiro, que não nos juntávamos naquela hora cúmplice em que nos conhecemos como mãe e filha. Por isso, em 2003, decidimos que irias passá-la comigo. Nessa altura, o Milénio saía às quintas-feiras. Por coincidência, nesse ano, calhou no teu dia. Como presente, dediquei-te uma carta de amor que hoje e, no mesmo jornal, aqui reproduzo.
Querida filha,
Faz hoje exatamente 35 anos que, pela primeira vez, sentiste um outro mundo que não fosse o líquido amniótico da tua mãe. Aquele que te envolveu e protegeu durante nove meses, a fazer fé na ciência que dita o tempo da gestação. A ciência é demasiado fria e matemática para saber que, mesmo que tivessem cortado o cordão umbilical que nos unia e deitado fora a placenta que te alimentava, continuei prenhe de ti. Esta gravidez continuará ilimitada, enquanto se mantiver esta outra corrente de amor que nos amarra e sustém de uma saudade indefinida.
O amor de mãe não é apenas um lugar-comum que emoldura proverbiais quadras popularizadas por gerações de letrinhas apenas. É muito mais do que isso! Por isso não há fronteira que o sustenha, nem mar que o afogue nos areais da distância. É um interlúdio entre dois atos, o da concepção e o da vida, que se prolonga enquanto durar a música interpretada a quatro mãos que se afagam na lonjura de um adeus.
Recordo com nitidez a nota primeira composta de madrugada: um romper de águas a esvaírem-se por entre as margens que desaguam na foz pélvica de uma cascata a correr pelo chão do quarto, transformado em estuário de uma maternidade anunciada. Foi nesse momento que se desenhou a hora breve.
Desejam-se sempre horas pequenas – Oxalá tenha uma hora pequena! nestes momentos. O vaticínio, cansado de andar de boca em boca, não se cumpriu. A hora que se desenhava breve transformou-se em dia pelo descontrolo de um qualquer ponteiro lunar que te colocou de cabeça para cima, engravidando também as medidas do tempo. Deixou-as atravessar a manhã, sentir a sombra sobreposta do meio-dia – como um cordão que se enrola à volta do pescoço – para se esvaziarem gordas e redondas num fim de tarde tropical. No minuto exacto assinalado no relógio de parede, um grito rompeu a solidão dos monólogos sussurrados, dias a fio, em conversas íntimas de ternura dedilhadas por entre o creme de amêndoas doces com que afagava as estrias da minha barriga rotunda de ti.
Senti-me completa, não por ter cumprido a profecia que nos manda parir na dor, mas por ter talhado naquela hora a página primeira do teu porvir. Senti-me orgulhosa por poder partilhar o castigo de uma Eva que ousou desafiar as leis do paraíso, tal como eu contrariava vontades paternas que exigiam primogénitos varões.
Um rio de loucura desfeito em lágrimas perante a obra da criação fez-se leito no meu corpo. Em cada lágrima o lavar de ansiedades, incertezas, vividas e adiadas na solidão do medo de que algo não estivesse bem.
Dou-me conta que te aproximas da minha idade, numa contagem inversa do tempo que faz de mim criança e a ti adulta, subvertendo toda a lógica de uma contagem crescente.
É por isso que eu tenho pressa de te fazer esta declaração de amor, depois de tantos anos de ausências partilhadas, antes que a vida se apague entre cais de despedidas sem termos tido tempo de dizer o quanto amamos.
E porque começa a ser tarde, deixa-me contar-te mais uma história de encantar, enquanto o escuro tomba sobre o teu quarto de criança, permitindo que a fantasia dance com todas as sombras que habitam a nossa imaginação. Depois, olhar-te bem nos olhos vadios de curiosidade e dizer-te baixinho, muito baixinho, como o fio de água que naquela manhã se desprendeu do meu ventre lasso de ti:
– Amo-te muito, minha filha!
Aida Batista/MS
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