Aida Batista

As heranças dos finados

 

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Por vontade divina/ nos une a memória.
As Mulheres Visíveis

 

 

Foi mais um dia de finados, dia de limpeza das campas, em que à água da lavagem se misturam as lágrimas das ausências sofridas na memória dos dias: dos pequenos gestos, dos lugares percorridos, dos momentos partilhados e dos muitos que ficaram por partilhar, das palavras ditas e de tantas que ficaram por dizer, dos diálogos falados através do olhar, quando a voz já não se fazia ouvir.
Não pratico o culto dos mortos, apesar das visitas esporádicas quando, levada por outras circunstâncias, passo pelo cemitério da aldeia onde os meus repousam. Sempre valorizei a vida e a forma como os tratamos antes de partirem. Que os cuidemos com o carinho que merecem, que estejamos atentos quando de nós precisam, que respeitemos os pedidos dos seus conceitos de bem-estar, que satisfaçamos as suas vontades e que, sacrificando algum do nosso tempo, arranjemos algum para os ver, lhes dar um beijo, um abraço, um toque de mãos, ou um simples telefonema, que se faça ouvir por trás da gaiola do isolamento de afetos em que vivem fechados.
E porque assim penso, não visito o lugar onde, há anos, jazem os vossos restos “imortais”, adjetivo que roubei a Mia Couto. Encher a campa de flores, como se a saudade se medisse pela quantidade e qualidade dos arranjos florais que as decoram, é um jogo que nunca soube jogar. Tudo se joga na roleta da vida, onde temos de saber escolher de forma sensata as peças do tabuleiro e, ainda assim, ficarmos sujeitos ao acaso das voltas, que alternam dias de sorte com os de azar.
Não preciso de viagens para vos visitar, porque em permanente viagem estou sempre que convosco dialogo nos retratos, recordando instantâneos que, amiúde, se cruzam no meu caminho, lembrando as vossas/nossas vidas paralelas ao meu desenvolvimento pessoal. De como continuámos juntos, mesmo depois da minha saída da casa, para construir o meu próprio ninho. De como, forçadamente, fomos separados pelos ventos da História, cujos sinais não soubemos ler. Do reencontro, após um regresso atribulado. Do nosso início (meu e vosso) na reconstrução de novas vidas. Das dificuldades de um outro iniciar, que não passava apenas pelas financeiras, mas pela adaptação ao rigor dos invernos trocados pelo calor de África. Da força e coragem precisas para recomeçar, depois de tudo perdido menos os filhos ainda trazidos pela mão.
Quando as peças pareciam encaixar-se todas no xadrez de muita vida para jogar, partiste tu, Mãe, sem que nada o fizesse prever. Em maio, mês de Maria, por quem tinhas especial devoção, deixando-nos numa inesperada orfandade. No tear invisível da tua sabedoria, sempre soubeste manobrar os cordelinhos da trama unida, exceto o fio que um dia se esgaçou. Deixaste o pai, perdido na sua dor, a aprender a viver a solidão dos dias sem a tua companhia. E foram muitos, até que chegou aquele em que passou a depender dos filhos. Cuidámos dele, o melhor que pudemos, mas conscientes de que ninguém ocuparia o teu lugar, porque assistimos à vossa cumplicidade, entregues um ao outro no amor e na dor, num equilíbrio em que, algumas vezes, a segunda vos atingiu como um raio. Não a dor física, mas a da alma, que vive dentro de nós e que, quando quer sair, há nós que a prendem afogada nas lágrimas presas na garganta. Acompanhei algumas delas e sei o quanto vos doeram.
Em dia de finados, e antes que o meu chegue, é este o balanço que faço do que têm sido as nossas efémeras vidas, porque todos estamos de passagem. Ficou a perenidade dos valores, a única herança que não é sujeita a partilhas por termos recebido o mesmo quinhão.
Como na parábola dos talentos, chegará o dia em que teremos de dar conta do destino que cada um lhes deu.

Aida Batista/MS

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