Aida Batista

As duas pontas da vida no cair da folha

As duas pontas da vida - portugal-mileniostadium
Crédito: DR

Há quem consiga viver com uma só estação, que priveligie apenas uma e se sinta mais confortável durante o período em que ela decorre. Há quem goste dos dias longos e luminosos, mas também os que preferem anoiteceres prematuros, daqueles que nos condenam  a ficar alguns meses na incubadora a que chamamos casa. O cheiro a lenha  e o crepitar da lareira a criar a dança das luzes das labaredas em tranças de amarelo, laranja e vermelho, e as velas espalhadas pelos móveis ajudam a esquecer a escuridão dos dias. Há os que tudo dão para andar com os corpos quase desnudos, sem o peso dos agasalhos que o frio exige, como os que anseiam pela chegada do aconchego da lã, da camisola de gola alta, do casaco compido, do gorro,  do cachecol ou da mantinha com que cobrem as pernas aninhadas no “choco” do sofá.

Assim, podemos dizer que há “Vivaldis” para todas as estações, mesmo quando estas nem sempre estejam bem definidas nos carris dos meses, e nos baralhem com um ou outro inusitado apeadeiro fora da linha do tempo. Eu pertenço ao grupo de quem gosta das quatro, por achar que todas elas, pelas mudanças que lhe estão subjacentes, reproduzem os ciclos da nossa vida – primavera, verão, outono e inverno – amplamente representados pela mitologia greco-romana.

O outono, porém,  faz-me sempre viajar até Toronto, onde, pela primeira vez pude assistir a um dos mais belos espetáculos de cor que nos oferece a natureza, usando apenas os pincéis da mudança de estação. É difícil descrever a profusão de verdes, amarelos, laranjas, castanhos e vermelhos que se subdividem num espectro de tons difíceis de captar em qualquer cavalete ou máquina fotográfica, tal é a variedade com que se apresentam. Mas, além das cores, foi lá também que, pela primeira vez, caminhei por passeios literalmente cobertos por tapetes de folhas secas, em quantidades até então nunca experimentadas. Debaixo dos pés, estalavam de cada vez que as pisava, e a velocidade do movimento do meu caminhar criava a música que me acompanhava, enquanto dava a volta ao jardim mais perto da minha casa. Nas vivendas, a azáfama dos residentes a encher sacos e sacos de folhas, sem que nunca me tivesse interrogado sobre o destino que lhes seria dado.

Por isso, o outono é o tempo do cair da folha. Uma vez mais nos confrontamos com a similaridade entre as estações e os ciclos da vida, porque, como diz o povo, é ao cair da folha que mais pessoas morrem. O povo não estudou estatísticas, nem nunca viu curvas ascendentes e descendentes ou gráficos, mas eles provam-no, como se a natureza quisesse igualmente interferir na nossa árvore genealógica e a fosse, aqui e ali, despindo de mais uma folha. Nem sempre é a mais envelhecida, nem sempre a que parece estar em vias de se soltar, porque também aqui a natureza, por vezes, subverte a ordem estabelecida. Como quem lê o verso de Alexandre O’Neil “conforme a vida que se tem, o verso vem”, não chegando este em forma de poesia, mas em sentença cáustica sem direito a apelo para qualquer entidade superior.

E o outono, o mês do cair da folha, segue o seu curso normal, despindo árvores e famílias, na certeza de que, passado o inverno, se dará a renovação. E nós, como diria, Inácio Vieira de Melo, “Temos que ir. E, quando damos o passo, muito do que somos fica”.

Como as folhas caídas no chão, seremos o húmus vital que há de fertilizar todas as árvores sucessórias que se vestirão de novas folhas.

“O meu fim evidente era atar duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência.” – Machado de Assis

Aida Batista/MS

Redes Sociais - Comentários

Artigos relacionados

Não perca também
Close
Back to top button

 

O Facebook/Instagram bloqueou os orgão de comunicação social no Canadá.

Quer receber a edição semanal e as newsletters editoriais no seu e-mail?

 

Mais próximo. Mais dinâmico. Mais atual.
www.mileniostadium.com
O mesmo de sempre, mas melhor!

 

SUBSCREVER