Aida Batista

Anjo da guarda

envelope - milenio stadium

 

Ainda gosto de escrever postais e de os mandar. Quando me ausento, envio-os a um ou outro amigo, a mim e aos meus netos. A mim, porque gosto de ficar com um registo das pegadas por onde ando. Aos meus netos, porque, se um dia visitarem esses lugares, encontrarão memórias de uma avó que por lá passou.

Também gosto de cartas, e tenho uma amiga que continua a chamar-lhes missivas. Gosto da palavra missiva que tão pouca gente já usa. Ao dar-lhes esse nome, recua-se no tempo e, apesar de digitais, chegam-me com cheiro a papel.

Mas há quem escreva postais todos os dias, como é o caso do Luís Osório. E a eles nos tenha habituado. O gesto de os ler no telemóvel faz parte do meu ritual diário. Para lhes colocar um “like”, um comentário, dependendo do tempo, do tema ou da vontade de interagir.

Desta vez, porém, não me fiquei pelo telemóvel; fiz uns quilómetros e fui ver/ouvir a conversa de Luís Osório com Pedro Abrunhosa na Casa das Artes em Vila Velha de Ródão. O Pedro atrasou-se. O Luís teve de ir para o palco entreter-nos, encher chouriços, como disse. E aguentou-se bem, enchendo meia hora com um monólogo que não nos cansou. Falou de figuras públicas de vários quadrantes do pensamento, de fora e de cá, e dos vários “ses” que condicionaram as suas vidas. Convocando o nosso imaginário, fez-nos pensar em como certas vidas teriam sido tão diferentes, se não tivessem sido atravessadas por determinados acontecimentos. Falou de perdas e de como as perdas afetam a nossa criação. Desenharia Siza Vieira casas sem janelas (o último elemento a ganhar corpo nos seus esquissos), se a sua vida não se tivesse tornado numa eterna busca pelos silêncios interiores? Saramago teria sido Saramago, se o seu irmão não tivesse morrido? E Pedro Abrunhosa? De que forma a morte do irmão o mudou?

Luís Osório fez-nos pensar em como as presenças e as ausências moldam as nossas escolhas ou alteram as nossas opções. E quando as perdas são de filhos? Como se vive depois da perda de um filho? Como suportar uma dor tamanha? De tão grande que é, lembrou-nos, nem a língua tem uma palavra para designar o estado de quem a sente! É-se órfão, pela perda dos pais; entra-se na viuvez com a perda do cônjuge, mas o que se é quando se perde um filho? Alguém agrilhoado à vida, mas sem vontade de viver, diria eu, que vi minha avó perder um filho em circunstâncias trágicas.

Depois, o Pedro Abrunhosa chegou, desculpando-se pelo atraso, e foi o abraço de amigos. E a prometida conversa fluiu sem amarras, à bolina das perguntas e respostas, em que de tudo se falou. Ao acaso, sem guião, como se querem todas as conversas. E o Pedro é um bom conversador. Por isso o Luís o deixou discorrer sobre si, o país, o mundo, como se de uma viagem se tratasse. E falou de Ulisses, de Penélope, de Ítaca, de partidas, de chegadas, de esperas longas em que se tecem e desmancham tapetes de amor. Falou-se também de casas, das nossas casas, dos nossos espaços de escrita, de composição ou de solidão. De como as casas vazias envelhecem. Desabitadas, falta-lhes alma, respiração, o sopro da vida.

Falou-se de vida, mas também de morte, porque a imortalidade deve ser uma chatice. Mas há quem lute por ela, para depois, como na mitologia, não saber o que fazer com ela. Pelo meio, o Pedro foi tocando e interpretando algumas das suas canções, aquelas que casavam com a conversa.

No final, um bolo e espumante para celebrarmos o aniversário da Casa das Artes, lembrando que o país é também o interior, que segue o curso do Tejo antes de chegar a Lisboa.

Aida Batista/MS

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