Aida Batista

Almoços improváveis

 

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Sigo, seco e só, atravessando a floresta de velhos. Carlos Drummond de Andrade, Os velhos.

 

 

No dia dos seus aniversários, tenho por hábito felicitar os amigos com um telefonema ou mensagem privada, reservando as redes sociais apenas para aqueles que não passam de meros conhecidos. Para não lhes roubar muito tempo, sou breve. Por experiência, sei bem o quanto o telemóvel nos massacra e não dá paz nesses dias, interrompendo conversas, convívios, refeições e até mesmo os silêncios a que temos direito.

Na passada semana, uma colega minha de curso celebrou o seu setuagésimo aniversário. Liguei-lhe depois do almoço, e não foi uma conversa apressada aquela que tivemos. Era dia útil da semana, as filhas estavam a trabalhar e os netos na escola, e logo percebi que podíamos falar sem tempo contado. Conversámos bastante: de um passado, que teve em comum o facto de sermos já mães quando começámos o curso, mas também dos nossos quotidianos, onde cabem os mais variados projetos a que nos entregamos, apesar da idade. A determinada altura, perguntei-lhe como iria ser o resto do seu dia. Soltou uma grande gargalhada e atirou:
– Olha, hoje estou a ter um dos meus almoços improváveis!

Lembrei logo do nome de um filme que vira há uns anos “Amigos improváveis” (Intouchables, na versão inglesa), sem fazer ideia que tipo de relação poderia existir entre um título e outro. No filme, um milionário tetraplégico contrata um homem da periferia para ser o seu acompanhante, tendo a relação profissional dado origem a uma amizade que mudaria a vida dos dois.

Para satisfazer a minha curiosidade, perguntei-lhe que tipo de almoço era. Explicou-me que, por impossibilidade de ter a família consigo, decidira convidar vizinhos velhotes e oferecer-lhes um almoço em casa dela. A tia Hermínia, coitada, que se queixava de estar muito sozinha; um casal (ele com 94 e ela com 86 anos) retornado de Angola, que já não tinha ninguém de família; o sr. Urbano e a d. Natália, de 80 e 76 anos, também a viverem a solidão das ausências, e ainda um primo deste casal, solteirão e com bastante idade. Preparara-lhes um cozido à portuguesa para que matassem saudades da variedade das carnes frescas e enchidos, bem como das batatas e das couves que ela retirara da sua horta. Tudo muito bem cozidinho, para que não constituam um desafio às dentaduras ou à falta de dentes que a idade acusa. Por isso, como sobremesa, confecionara um pudim. – É só engolir, nem é preciso mastigar! – disse numa gargalhada solta, que tão bem lhe conhecia. A gargalhada genuína e autêntica de uma académica e investigadora, que nunca escondeu as marcas de ruralidade que saltam de qualquer conversa. Riu-se ainda mais quando acrescentou:
– E amanhã vêm cá outra vez! Vou fazer uma feijoada com os restos das carnes e já os convidei.

Acompanhei as gargalhadas felizes, de quem, como prenda de aniversário nada pedira, mas, ao contrário, quisera dar. Dar do seu tempo, aquele bem de que todos se queixam ter cada vez menos. Mas ela sabe como gerir o seu e, em dias especiais, partilhá-lo com uma vizinhança a quem o tempo sobra todos os dias.

Eu, que pensara estar ela sozinha, percebia agora que vozes eram aquelas que eu ouvia. Uma toada de felicidade sonora emanava como música de fundo, alheia a qualquer manual de alimentação saudável que proibiria aquela refeição e a do dia seguinte. A transgressão não é propriedade apenas de jovens rebeldes, mas pertença também de velhos que estejam dispostos a trilhar os seus caminhos para não ficarem à margem de si próprios.
Desliguei o telefone e fechei os olhos. Daí em diante, o cozido e a feijoada passariam a ter o sabor e o aroma de humanidade em tempo de solidão.

Aida Batista/MS

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