A PINTURA FALA NA PÓVOA

A pintura é poesia silenciosa, a poesia é pintura que fala.
Simónides de Ceos, poeta grego
No nosso calendário coletivo estão averbadas as festas móveis como o Carnaval, a Páscoa ou o Corpo de Deus. No meu calendário, porém, há uma que não consta dos oficiais, mas que eu faço questão de assinalar de um ano para o outro – a semana da festa literária mais importante do país – as Correntes d’Escritas.
Iniciada no ano 2000, no âmbito da celebração do centenário de Eça de Queirós, na Póvoa de Varzim de onde o escritor era natural, é lá que se realiza, sem interrupção, a 26ª edição. O mar da Póvoa é, desde então e durante uma semana, o estuário para onde afluem todas as correntes de expressão do pensamento em línguas ibéricas – português e castelhano – com autores provenientes da Península Ibérica, América Central e do Sul e da África Lusófona.
Fevereiro é o mês mais curto do ano, mas, na Póvoa, ele agiganta-se e ganha um tamanho maior do que todos os outros porque a intensidade dos dias vividos, sob a égide das palavras, lhe acrescenta em qualidade o que lhe falta em quantidade.
A entidade promotora e organizadora do evento, a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim em parceria com outras entidades, programa toda a logística com muita antecedência. Dir-se-ia, como é habitual, que se começa a preparar o ano seguinte no exato momento em que o anterior acaba. Só assim se entende que, ao longo dos anos, o evento tenha atingido a qualidade e a dimensão que hoje lhe reconhecem. Os simpatizantes, entre os quais me incluo, fazem o mesmo. Como numa romaria, declaram a intenção de lá voltar e, de agenda na mão, bloqueiam as datas de um ritual obrigatório a cumprir, a partir da vez primeira em que fazem a jura de voltar. Neste rito que se repete, damos por nós a fazer telefonemas aos amigos repetentes e a convencer os hesitantes, que ganharam já o estatuto conferido pela toponímia – os amigos da Póvoa – porque, entregues à rotina acomodada das nossas vidinhas, é lá que nos reencontramos.
Curiosamente, algumas dessas amizades nasceram nas filas de espera, antes das portas do teatro Garrett abrirem, entre triviais conversas em que se descobrem geografias, gentes e interesses comuns. Porque a Póvoa é também isto – uma força subterrânea que nos enrola nesta onda de proximidades por descobrir.
As diversas mesas de conversa e debate têm-se subordinado a um verso ou a uma frase de um autor homenageado, sobre o qual os intervenientes convidados devem discorrer de acordo com a sua interpretação e leituras próprias. Este ano, contudo, o mote não será um verso, nem uma frase, mas um quadro emblemático da pintura mundial, num jogo em que literatura e pintura dialogam em sincronismos (ou não) de ideias. Recorrendo à máxima de que “uma imagem vale mais que mil palavras”, veremos quantas palavras serão necessárias para que cada convidado se debruce sobre o quadro que lhe é proposto. Estou expectante, já que será a primeira vez que terei oportunidade de assistir a este modelo.
Foi a escritora Lídia Jorge quem, numa entrevista, afirmou que “estamos sempre nus diante do futuro”. Partindo da metáfora da nudez como o estado mais puro da inocência, direi que estou aberta a todas as novidades para delas retirar a roupagem com que me hei de vestir no regresso. Uma certeza tenho – chegarei a casa muito mais bem vestida! E de onde me vem essa certeza?
De um saber de experiência feito de vivências anteriores, em que as correntes percorrem toda a semântica da palavra para ganhar outros significados: do inicial que amarra e prende, e depois se soltar na força de um pensamento revolto em espuma branca de criatividade a espraiar-se no areal da originalidade e da erudição.
Aida Batista/MS
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