Aida Batista

A pescadora de vontades

 

pescadora - milenio stadium

 

Vi teu braço acenando,
entre as velas já soltas.

Barco Negro, letra de David Mourão Ferreira

 

Andamos diariamente de um lado para o outro, entregues aos nossos pensamentos, sem darmos conta de quem passa ao nosso lado. Cada pessoa com quem nos cruzamos carrega a sua história de vida ou uma vida com história, a que ficamos indiferentes. Não é o caso de Helena da Bernarda que, com a sua máquina fotográfica, caminhou em busca de vidas para registar em imagens e palavras que deram corpo ao livro “Nós nos Outros.”

Gosto do título. “Nós”, como palavra polissémica, permite duas leituras: pronome pessoal ou substantivo. No primeiro caso, todos nós nos revemos em pedaços das vidas dos outros, incorporados que estamos em qualquer das vidas retratadas. Como substantivo, cedo concluímos que todas as vidas são feitas também de nós ensarilhados, rematados no avesso da urdidura que vamos tecendo ao longo do tempo. No avesso, para não serem vistos, mas escondidos por trás de um rosto, de um sorriso, ou de uma alegria, disfarçada na reserva da intimidade de cada um.

Foi por mero acaso que cheguei a Alexandra da Bernarda: através de uma amiga que, abordada e entrevistada à saída de uma exposição, me falou do livro. Mostrei interesse, enviei e-mail à autora e tinha duas maneiras de o adquirir: pelo correio ou entregue em mão. Preferi a segunda hipótese, porque gosto de um livro de corpo inteiro: conhecer o rosto da autora, a voz que fez as perguntas, as mãos que o escreveram e os gestos com que se expressa, como elementos identitários da obra.

Não entro nos detalhes do encontro, porque o que importa é falar do livro e das vidas que folha a folha se dão a conhecer. Logo na página 17, aparece-me a fotografia de uma mulher – Maria José – que, natural de Esposende, por amor se fixou em Castelo do Neiva, de onde o marido é natural. Mais conhecida por Zeza, ela e o marido trabalhavam numa fábrica de redes em turnos diferentes (um de noite, outro de dia) pelo que se encontravam “de raspão”.

Ele, além de trabalhar na fábrica, também ia ao mar, que Castelo do Neiva é terra de pescadores. A vida não era fácil e ainda pensaram em emigrar, mas ele, habituado ao risco da vida do mar, não arriscou deixar de o ouvir marulhar. O pai tinha um barco, mas, numa noite de sábado para domingo, faltou-lhe o ajudante. Zeza não hesitou e disse ao sogro: “Deixe estar que eu vou consigo.” E foi. E a noite correu muito bem, como se a aprendiz de pescadora fosse a ninfa que atraíra os peixes à rede.

Quando o sogro se reformou, arranjou um tripulante que falhou à palavra dada. Zeza não pensou duas vezes e tomou a decisão de passar a ser a companheira do marido, perante o espanto da população que, como as velhas loucas da praia do “barco negro”, lhe vaticinaram uma experiência breve. Enganaram-se e, em 2005, Maria José passa a ser a primeira mulher pescadora daquela região.

Muito cedo Zeza se apercebeu de que, em vez de cada um puxar para seu lado, a força estaria na união de todos. Lembrou-se de criar uma Associação que juntasse todos os pescadores para, de forma solidária, resolverem os seus problemas. Assim se torna, em 2011, presidente da Associação dos Armadores de Castelo do Neiva, constituída por 22 barcos associados. Um cargo, só por si, nada diz, a não ser que sirva para dar voz aos que dela precisam. É o que faz Maria José, quando solicita apoios à Capitania ou à Junta de Freguesia, para pedir uma máquina que puxe as embarcações ou um trator que retire o sargaço para facilitar a passagem.

Após estas conquistas, pensaríamos que já tinha atingido todas as suas metas, mas ela quer mais, sempre mais, para aqueles que, do mar, retiram o pão com que alimentam as suas famílias. Concluiu o 9º Ano, através do programa “Novas Oportunidades”, mas não se arrepende de não ter ido mais longe. “Aprendi outras coisas” – diz ela.

Estou certa de que uma delas foi ter estado sempre ao lado dos pescadores, aprendendo a pescar vontades para as leiloar na lota da solidariedade.

Aida Batista/MS

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