Aida Batista

A Língua em que vivemos

Também as palavras têm/ as suas passagens secretas:/

Quando atingem as profundezas/ toda a voz se torna eco

José Mateos, escritor e pintor espanhol

Em setembro de 1989, quando iniciei as minhas funções de Leitora de Português na Finlândia, foi a primeira vez que me senti completamente afastada da minha língua. Imaginem-me nos meus circuitos diários, apenas a ouvir falar finlandês e toda a toponímia, sinalética, mensagens na sala de professores estarem escritas numa língua que nada tinha em comum com a minha, nem com as outras que havia estudado e com as quais estava mais familiarizada. Vivia numa clausura de silêncios.

Recordo bem que, ao fim de uns dias, quando fui recebida na Embaixada de Portugal, exclamei com uma enorme satisfação: “Que bom ouvir falar português!” 

A resposta do embaixador não se fez esperar: “Então, não fala português com os seus alunos?”

Não levei a mal o tom em que a sua observação foi formulada e, muito diplomaticamente, tentei explicar-lhe que as quatro paredes de uma sala de aulas não são propriamente um espaço onde se tem uma conversa fluente e natural sobre os mais diversos assuntos, mas estamos condicionados pelo programa que tem de ser cumprido. 

Não adiantei muito mais porque achei que seria obrigação de qualquer diplomata saber a diferença entre uma aula de gramática, fonética ou literatura e os contextos informais e naturais dos diálogos em que se aplica a máxima “As conversas são como as cerejas”, apanha-se uma e as outras vêm de seguida.

Considerando que o Português estava integrado no Departamento das Línguas Românicas, mas ligado ao Instituto Ibérico, uma grande parte dos estudantes de português já havia também estudado espanhol, tendo já visitado Espanha ou qualquer outro país da América Latina. Era, portanto, normal que falassem castelhano.

Numa daquelas tardes em que nos reunimos num local público, uma das alunas precisou de usar uma cabine pública (não havia ainda telemóveis) para contatar alguém. De repente, uma outra aluna do grupo foi perentória: “Olha, ela está a falar espanhol!”

Surpreendi-me porque do lugar onde estávamos não conseguíamos ouvir nada. Veio, então, a observação pertinente. “Vê como ela mexe os braços e as mãos!”

Não deixava de ter razão. Os finlandeses, quando conversam, são muito contidos na expressão corporal. Além de não falarem alto, também não têm o hábito de gesticular como os latinos, nem de tocarem no corpo uns dos outros.

Sempre soube que nos comportamos de forma diferente consoante a língua em que nos expressamos. Esta questão, no entanto, ganha maior destaque quando vivemos uma época em que numa grande parte das famílias se vivem situações de bilinguismo ou até mesmo de multilinguismo. Apesar de este tema não ser propriamente uma novidade para aqueles que estão familiarizados com estas questões, um artigo de Helena Lopes, publicado no passado dia 17 (no jornal online ZAP), traz-nos elementos que o confirmam.

Estudos feitos, à luz da psicolinguística, psicologia cognitiva e antropologia linguística, provam que as várias línguas em que comunicamos moldam não só a nossa perceção do mundo, mas também a de nós próprios. Assim, saltar de uma língua para outra, leva a que também nos comportemos de forma pendular, em função da língua que estamos a utilizar. O mesmo acontece com os interlocutores, que são igualmente condicionados.

Do ponto de vista emocional, sabemos que quando queremos exprimir determinados sentimentos estes ganham forte carga emotiva se forem expressos na língua materna. O mesmo se passa com as nossas memórias mais recuadas. É na língua em que elas foram armazenadas que conseguem ser descritas de forma mais pormenorizada e com maior expressão emotiva.

Se é um lugar-comum dizer-se que “somos aquilo que comemos”, poderemos agora também dizer que “somos a língua em que vivemos”, porque só nela encontramos as passagens secretas para as emoções.

Aida Batista/MS

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