A força do nosso olhar
É o nosso olhar que muitas vezes fecha os outros
nas suas estreitas pertenças, e é também o nosso olhar que os pode libertar.
Amin Malouf, in Identidades Assassinas
“Portugal! É nosso!
Portugal! É nosso!”
Precisamente no dia em que os telejornais abriram com a notícia de que os imigrantes contribuíram, de há quatro anos para cá, com mais 44% para a segurança social, foi este o grito que, no passado domingo, se ouviu à medida que os manifestantes, empunhando a bandeira nacional, desfilavam na Av. Almirante Reis em direção à Praça do Rossio.
Portugal! – bradava repetidamente quem tinha o megafone na mão. – É nosso! – respondia o coro em uníssono. Às janelas dos prédios mais altos assomavam imigrantes, sem que muitos deles percebessem o que se estava a passar. Indiferentes, tiveram, no entanto, de ouvir frases insultuosas por parte dos manifestantes, bem como alguns comentários pouco abonatórios, à medida que quem engrossava a marcha era entrevistado pelos jornalistas de serviço. Quando questionados sobre o facto de nós, portugueses, sermos igualmente um povo de emigrantes, não resistiram à linguagem caceteira: “Sim, nós fomos para fora, mas nunca chulámos a segurança social desses países. Nós fomos trabalhar!” Outros, com a mesma convicção, acusavam os imigrantes de não fazerem nada, de conseguirem passaportes portugueses sem sequer falarem português (o que é manifestamente falso), de viverem à custa de subsídios, bem como outras tantas alarvidades como a de quererem Portugal de volta, de acordo com os sentimentos de ódio mais primários que cada um cultiva no mais íntimo de si. Quem não conhecesse o propósito desta manifestação, pensaria que as nossas fronteiras estavam ameaçadas e Portugal, país com as fronteiras mais antigas da Europa, prestes a ser invadido.
À medida que a palavra de ordem, tantas vezes repetida, ecoava nos meus ouvidos, “Portugal! É nosso!”, recuei umas décadas que me fizeram recordar uma canção de pendor militarista, nascida na década de 60, em resposta ao movimento independentista de Angola que deu origem ao início da guerra colonial (https://www.youtube.com/watch?v=V3PoaB-q7TE).
Depois de Salazar ter também feito soar o mote: “P’rá Angola já, e em força!”, Duarte Ferreira Pestana compôs a música e Santos Braga escreveu a letra, a que André Ventura foi buscar o refrão: “Angola! É nossa! Angola! É nossa!”, cantado sobre um fundo inicial de rufar de tambores, enquanto se ouvem botas a marchar. Algumas estrofes que se seguem são bem esclarecedoras: […] “Ao invasor/ castigar/ com o destemor/ ancestral/ deter/ destroçar/ vencer/ escorraçar/ e gritar […].
Em Angola, sabemos como tudo terminou, estamos conversados, porque o tempo não deu razão aos autores da composição musical.
Ventura inspirou-se na letra da canção e pôs parte do país a gritar, “com o destemor ancestral”, que é preciso “deter, destroçar, vencer, escorraçar” a que acrescentou ainda o verbo “deportar”. Temos fronteiras antigas, é certo, mas memória curta. Os que agora gritam esquecem-se do nosso passado, sabendo mesmo que a emigração portuguesa ilegal continua. Hoje, temos ainda muitos portugueses que entram num país estrangeiro com visto de turista e por lá ficam na esperança de depois se legalizarem. Eu conheço casos, amigos meus conhecem casos, todos conhecemos casos, porque é da natureza do ser humano tentar por qualquer via melhorar as suas condições de vida, por mais que tentem travar as suas ambições. Por isso, no Largo do Intendente, paralelo à mesma avenida, uma outra concentração, de sinal contrário, festejava a diversidade e a convivência inter e intracultural, fazendo jus a um acolhimento de natureza harmoniosa que permita uma integração plena.
Qualquer imigrante vive suspenso da esperança do tempo e do espaço que nem sempre lhe são favoráveis a um enraizamento pacífico. Temos, uma vez por todas, de aprender a viver com a diferença e a estabelecer pontes de diálogo entre nós e os outros, libertando-nos do nosso olhar preconceituoso face à diferença.
Aida Batista/MS
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