Opinião

A trama da vida

A vida faz-se como uma corda. É preciso trançá-la até não distinguirmos os fios dos dedos. Mia Couto

Fui à Sociedade de Geografia, há uns meses, assistir a um colóquio sobre Migrações, tema que permite as mais diversas abordagens, desde as de cariz económico, político, bélico, religioso e, mais recentemente, as de natureza climática.

Após as comunicações, como é habitual, segue-se um período de debate em que o público pode intervir, comentando ou tirando dúvidas. Uma investigadora presente colocou a questão de ser diferente alguém tomar a decisão de emigrar – já que será sempre uma escolha pessoal, independentemente das motivações -, ou ser levado pela família, como frequentemente acontece aos filhos menores raramente consultados.

Curiosamente, eu nunca havia pensado nesta dualidade de posições que opõem o obedecer ao querer. No entanto, de imediato me vieram à mente nomes de conhecidos e amigos, cujas narrativas pessoais se inseriam em cada um dos dois lados. Foquei-me, então, nas crianças e adolescentes (hoje adultos) arrancados ao chão onde viviam, à escola, aos amigos, aos familiares, e transplantados para um outro chão, onde tudo era novo e tão diferente. Muitas dessas histórias de vida mereciam ficar registadas, não fora a natural tendência de os seus protagonistas invocarem, quase sempre, não terem jeito para escrever ou não serem capazes de o fazer. Este argumento, quase sempre verdadeiro e devidamente fundamentado, devia fazer-nos pensar que é urgente alguém, interessado nestas matérias, começar a gravar histórias de vida para memória futura. Mais tarde, poderão dar origem a estudos que ganhem o formato de biografia, novela, romance, ensaio, banda desenhada, vídeo, ou qualquer outro. O mais importante, neste momento, é que elas existam devidamente documentadas.

A primeira novela pastoril da Península Ibérica, escrita por Bernardim Ribeiro e publicada em 1554, teve o título de “Menina e Moça”, por começar assim:
“Menina e Moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui eu em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava.”

Nos meus tempos de liceu, convivi com este texto por fazer parte do programa de Literatura. Algumas vezes citei a primeira frase, mas quase sempre para brincar com a minha idade, porque os tempos de menina e moça já lá vão. Por uma qualquer associação de ideias, ocorreu-me relembrá-lo hoje porque, lido à luz de todas as experiências por que passei, admito que encaixa perfeitamente no modelo das histórias de emigração de quem foi levado, seja ele uma personagem feminina ou masculina.

E os pontos de convergência começam logo na partida para longe, ainda criança, sem que se soubesse a causa, porque tinha de ser mesmo assim, como se o país estivesse sujeito a um determinismo que empurrasse os portugueses para fora. Lembro-me de ter feito a pergunta a quem passou pela situação de ser levado, e receber como resposta: não saberem ou não se lembrarem.

Também as vivências num determinado tempo e espaço são de tal maneira fortes, que já não conseguem ver-se a viver noutro lugar, mesmo quando, aos momentos mais felizes, se sucedem outros de uma enorme deceção. A felicidade, como diria Virgínia Wolf, “é ter um pequeno fio, onde as coisas se prendem por si”.
Tenha a vida a textura de um fio ou de uma corda, tudo nela penduramos ao sabor do tempo, baralhando a trama dos momentos de que é feita. Só assim se compreende que comece por falar em Migrações e chegue à Menina e Moça de Bernardim.

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