OpiniãoAida Batista

A lei de Lavoisier aplicada ao presépio da minha infância

O passado domingo foi o Dia da Imaculada Conceição.

Cresci a festejar-te nesse dia porque se havia convencionado chamar-lhe o Dia da Mãe. Depois mudaram-no para maio e, ironia das ironias, esse é o mês em que celebramos a tua partida. Dezembro, contudo, continua a ser aquele em que mais te recordo. É o mês da natividade de Jesus, o mês em que se celebra a maternidade daquele que veio ao mundo para nos salvar, dizias tu, no maior fervor das tuas convicções religiosas. Por coincidência, foi também o mês de quatro das tuas doze maternidades: um rapaz e três raparigas, entre as quais estou incluída. Por isso, disputaste com a Virgem a condição de teres sido mãe no mesmo mês que ela, sem ter sido imaculada nenhuma das tuas conceções, segundo os cânones católicos. Nós é que não achávamos muita graça porque sempre nos sentimos prejudicados por termos nascido na quadra do Natal o que fazia diminuir o valor do nosso presente, já que receberíamos dois no mesmo mês, embora tu, como mais ninguém, soubesses gerir a arte de poupar, equilibrando orçamentos que a todos contentasse. Dezembro era, por isso, um mês de uma gestão mais exigente.

Sem saberes quem fora Lavoisier, praticavas na perfeição a máxima por ele formulada: “Na natureza nada se perde e nada se cria, tudo se transforma”. Cortar, acrescentar, encobrir nódoas com uma prega, um rasgão vertical com uma nervura, tapar um buraco com um bolso estrategicamente chapado, colocar barras em saias ou falsos cós em vestidos para lhes prolongar a altura, faziam de ti uma artista na técnica do disfarce. Na cozinha, aumentavas porções recorrendo à habilidade do molho espesso que faziam as sopas de pão saciar tanto quanto a carne. Um pouco mais de água no sumo aumentava o número de porções, ou o leite nos ovos batidos para que a quantidade desse sempre para mais um pastelão. Cristo fizera o milagre da multiplicação dos peixes, mas tu operavas diariamente os teus pequenos milagres, sem o reconhecimento de qualquer aura de divindade.

Numa casa onde havia muitas crianças, de vez em quando ouvia-se o baque surdo de um bibelot que havia caído ao chão. Tu juntavas cuidadosamente os cacos, ias buscar o tubo da cola e tentavas refazer o modelo original, recolocando-o depois no mesmo lugar, em posição que disfarçasse as cicatrizes do acidente.

A propósito, recordo o presépio em que vez foste exímia na arte de nada desperdiçar. O rebanho de ovelhas brancas, que o pastor guardava junto ao verde do lago, feito com uma travessa bem dissimulada entre as pedras cobertas de musgo. As cabras, devido à agilidade de serem animais trepadores, acantonadas na parte mais montanhosa e árida da paisagem.

Uma das cabras que, numa posição de equilibrista, desafiava as leis da gravidade, foi estatelar-se na cobertura da gruta, tendo pelo meio derrubado uma das ovelhas que ficou sem cabeça. A cabra desfez-se toda com a força do embate, mas salvou-se a cabeça que, ao saltar, ficou retida num pedaço de algodão que imitava a neve. Coisa nunca vista, porque, em acidentes destes, a cabeça, mais frágil, era sempre a primeira a desfazer-se!

Tu não hesitaste, tubo de cola na mão, pegaste na cabeça da cabra e encaixaste-a no corpo da ovelha. Devido ao teu espírito prático, que nada sabia de clonagem nem de manipulação genética, fizeste com que o presépio lá de casa passasse a contar com um animal indefinido na sua identidade.

É assim que sempre te lembrarei – a mãe que, pródiga no improviso, fazia das coisas mais simples um hino à vida, num tempo em que a palavra reciclagem não fora ainda inventada.

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