À espera do natal
DR.“Saber não ter ilusões é absolutamente necessáriopara se poder ter sonhos”. – Fernando Pessoa
Era sempre minha mãe quem fazia as nossas roupas. A máquina de costura, uma velha Singer que ainda hoje resiste à idade, foi sempre uma peça do mobiliário lá de casa a fazer-se ouvir no movimento sincopado da roda pedaleira. Idas à modista, só em ocasiões muito especiais. Recordo-a, baixinha e redonda, com um sorriso a abrir-nos a porta e a convidar-nos para entrar. A um canto da sala – entre cestos com restos de tecidos de várias texturas, carros de linhas de várias cores, botões, colchetes, molas, fivelas, elásticos, rendas e bordados -, erguia-se um manequim sem cabeça nem pernas, assente num varão de metal, que terminava num círculo a enterrar-se no pelo macio da carpete. Fazia-me uma certa confusão que aquele simulacro de figura humana servisse para assentar trabalhos alinhavados, que tanto podiam ser do tamanho S, como M ou L.
As idas à modista eram verdadeiros rituais que exigiam duas provas para que o resultado final dos modelos escolhidos se ajustasse às medidas dos nossos corpos. Nessas alturas, eu tinha acesso às revistas de modas para que pudesse, entre imagens de elegância, escolher aquela que mais se coadunasse com a minha idade. Os tecidos seriam sempre imitações baratas, mas isso não me impedia de, por momentos, entrar na pele do manequim que havia escolhido.
Enquanto minha mãe e a sempre bem-disposta D. Cesaltina trocavam impressões sobre a família e a vida, eu folheava fascinada as revistas que, a partir da Europa, ditavam o último grito da moda. E vindo elas de lá, havia-as para todas as estações, embora eu só conhecesse duas: a das chuvas – com temperaturas muito elevadas – e três meses de cacimbo, em que os termómetros desciam ligeiramente durante a noite, cobrindo com uma película de humidade a paisagem envolvente. Fazia lembrar, segundo minha mãe, as madrugadas orvalhadas da sua aldeia natal.
Se na escola primária havia viajado pelas estações do ano, por via das redações que a freira do colégio nos ensinava a fazer, na adolescência passei a vivê-las através da Burda. Não esqueço o deslumbre perante a chegada da primavera com os brancos, rosas e azuis a romperem a escuridão dos cinzas e pretos do inverno; a leveza dos modelos vestidos de algodão, seda, organza e flores no cabelo; no verão, os padrões vivos das saias rodadas e franzidas, os calções, bermudas e decotes ousados; a variedade dos tons outonais em sintonia com a queda das folhas, que tanto podiam ser amarelas ou castanhas, como da cor do sangue mais vivo. Por fim, e esta era a grande ironia, quando as temperaturas quase atingiam o pico do nosso verão africano, desfilavam na edição de dezembro modelos vestidos de tecidos mais quentes, peles, botas, gorros e cachecóis, por entre paisagens brancas de neve ou interiores de casas com a lareira acesa, já que a revista também se dedicava à decoração.
Foi nestas revistas que nasceu a minha paixão pelos ambientes de inverno e camisolas de gola alta: lisas, com torcidos ou padrões da época que o suplemento se encarregava de exemplificar em papel quadriculado. Imaginava-me assim vestida, a deslizar de meias altas pelo chão de madeira ou aninhada no canto do sofá com uma caneca de chá entre as mãos.
Quando em 1975 cheguei a Portugal, depressa caiu por terra essa ilusão. Toda a gente me prevenira para o rigor do inverno, mas ninguém me alertara para as temperaturas baixas do interior das casas.
Os dias mais frios já se fazem sentir, mas eu nunca me consegui despir desta roupagem romântica que me faz sonhar com uma casinha de montanha onde, junto à lareira e vestida de camisola de gola alta, continuo a aguardar a chegada do Natal.
Aida Batista/MS
Redes Sociais - Comentários