Organização Mundial da Saúde diz que a pressa não pode sacrificar a segurança das pessoas. Comunidade científica desconhece resultados dos ensaios clínicos e última fase foi ignorada.
O presidente russo, Vladimir Putin, anunciou a intenção de distribuir em larga escala uma vacina contra a covid, já a partir de janeiro de 2021, mas dificilmente a Sputnik V será utilizada em Portugal. O segredo com que foi desenvolvida e o facto de não ter cumprido a última – e crucial – fase de testes causaram alertas vermelhos na comunidade científica internacional.
“Esta vacina nunca será disponibilizada em Portugal sem passar pelo crivo das agências regulatórias” da Europa e de Portugal, garantiu ao JN Miguel Prudêncio, do Instituto de Medicina Molecular e um dos investigadores que está a desenvolver uma vacina contra a malária. Ou seja, nunca será inoculada num português enquanto não houver garantia de que é eficaz contra o vírus SARS-CoV-2 (oferece um nível mínimo de proteção) e segura para o ser humano (não tem efeitos secundários significativos).

Há dúvidas a mais
A Rússia garante ter já pré-encomendas de mais de 20 países e o estado brasileiro do Paraná disse estar em negociações. Mas, perante o segredo que rodeia a vacina desenvolvida pelo Gamaleya Research Institute, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou cautela e a Alemanha veio a público duvidar da sua qualidade, eficácia e segurança. Por duas grandes razões.
Primeiro, “não há qualquer reporte científico” sobre os ensaios já feitos, pelo que a comunidade científica e os reguladores desconhecem os resultados dos ensaios, lamenta Miguel Prudêncio.
Segundo, a Rússia saltou a terceira e última etapa do desenvolvimento de uma vacina: o ensaio em humanos, em larga escala [ler detalhes ao lado]. A vacina russa só cumpriu as duas primeiras fases de ensaios em humanos, de acordo com a informação existente no site da OMS. Essas duas fases envolveram só 38 voluntários, todos militares russos. Não realizou a terceira fase dos ensaios.
Como termo de comparação, note-se que a fase 3 de testes à vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford terá dois mil voluntários, a chinesa Sinovac prevê quase nove mil, o também chinês Wuhan Institute of Biological Products contará com 15 mil e a Pfizer e a Moderna terão 30 mil voluntários cada.
Previsão: verão de 2021
Das seis vacinas que já estão na fase 3 de ensaios clínicos, quatro preveem ter resultados finais em julho ou outubro de 2021 e duas no outono de 2022. “Quando me perguntam por datas, prefiro dizer que nunca antes do próximo verão”, diz Miguel Prudêncio.
As farmacêuticas estão já a apostar que terão resultados positivos nesta última fase dos ensaios clínicos e vão começar a produzir em massa ainda antes de terem os resultados finais.
Além das seis mais avançadas, duas dezenas de outras vacinas estão em ensaios clínicos. Há ainda 139 em fase pré-clínica (em laboratório, antes de avançar para testes em humanos).
Vacina negociada por Bruxelas está mais atrasada
Portugal será abrangido pelo acordo que a Comissão Europeia assinou com a farmacêutica Sanofi Pasteur/GSK para o fornecimento de 300 milhões de doses. Mas esta vacina ainda não saiu do laboratório: é uma das 139 candidatas que ainda estão em testes pré-clínicos, de acordo com um balanço publicado pela Organização Mundial de Saúde. A Sanofi prevê começar as duas primeiras fases de ensaios em humanos em setembro e, se os resultados forem promissores, iniciar o ensaio em larga escala no final do ano. O objetivo, ambicioso, é conseguir uma aprovação pelas autoridades regulatórias da saúde na primeira metade de 2021. Enquanto isso, está a preparar as instalações em França, Bélgica, Alemanha e Itália para começar a produzir mil milhões de doses por ano. Bruxelas está a negociar acordos semelhantes com outras farmacêuticas.
Que dúvidas levanta a vacina da Rússia?
O desconhecimento sobre o processo de desenvolvimento é a principal crítica. Sem resultados publicados, a comunidade científica não pode validar as conclusões russas.
Putin quer vacinar os russos. E os portugueses?
Portugal só adota vacinas aprovadas pelo regulador europeu (Agência Europeia Medicamento) e nacional (Infarmed). E estas entidades só a certificam se tiverem provas de que é segura e eficaz. A Rússia ainda não revelou informação que permita saber se a vacina cumpre as regras.
A fase 3 dos ensaios é assim tão importante?
É “crucial”, diz Miguel Prudêncio. Nas primeiras fases, a vacina é testada em dezenas de pessoas, pelo que o resultado pode estar enviesado. A fase 3 envolve milhares de voluntários. Só assim se sabe, com segurança, que efeitos terá na população.
Por que razão a fase 3 demora meses?
Como não há tratamento para a covid, a ética proíbe que as pessoas sejam infetadas de propósito, diz Miguel Prudêncio. Tem de haver uma exposição natural, em que os voluntários fazem a vida normal durante o tempo suficiente para que contactem com doentes (ou para garantir probabilidades altas de tal acontecer). É por isso que esta fase está a decorrer em países com muitas infeções, como os EUA, Brasil ou África do Sul.
JN/MS
Redes Sociais - Comentários