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Morreu o Papa Francisco

O jovem Jorge Mario Bergoglio Foto: Courtesy Sergio Rubin/CLARIN / AF/JN

Jorge Mario Bergoglio nasceu no Bairro das Flores, em Buenos Aires, capital da Argentina, no dia 17 de dezembro de 1936, e foi batizado no dia de Natal.

O pai, Mario Giuseppe Bergoglio (1908-1961), um emigrante natural da região italiana de Piemonte, trabalhou como contabilista nos caminhos de ferro e mais tarde numa fábrica de meias. A mãe, Regina María Sivori (1911-1981), era filha de uma italiana e nasceu em Buenos Aires, tal como o seu pai. Ocupava-se da educação dos cinco filhos, sendo Jorge Mario o mais velho. Depois dele, nasceram Oscar, Marta Regina, Alberto Horacio e María Elena.

Jorge Mario tinha uma especial ligação à avó paterna, Rosa, que era muito religiosa, e guardava no breviário uma carta que ela lhe escrevera antes de ser ordenado padre. Outra pessoa a influenciá-lo em termos religiosos foi o sacerdote que o batizou. Mas também os pais, que rezavam muito, lhe incutiram a fé desde o berço.

Em miúdo, adorava massa com carne estufada. Jogava mal futebol e também não era nenhum craque no básquete. Apesar de responsável e estudioso, não tinha nada de marrão, mas andava sempre com livros. Amante da literatura, era muito inteligente e aprendeu a multiplicar subindo e descendo escadas, um método que ele próprio criou.

Teve uma apaixonada aos 12 anos e disse-lhe que se ela não casasse com ele, iria para padre. Até chegou a fazer um desenho com uma casa para lhe oferecer, mas isso deu problemas entre as famílias, que se zangaram. Mais tarde teve outra namorada mais a sério, uma jovem que fazia parte do grupo de amigos com quem ele ia dançar. Sim, Jorge Mario gostava de dançar. “É algo que me sai de dentro”, disse um dia a propósito do tango, embora preferisse a milonga. Gostava de Astor Piazzolla e tinha ouvido para a ópera. Aos 10 anos chegou a estudar piano.

Quando tinha 14 anos trabalhou na fábrica de meias onde o pai era contabilista. Ouviu o chamamento de Deus aos 17, ao confessar-se. Corria o ano de 1953, e na Argentina celebrava-se a chegada da primavera e o dia do estudante, mas Jorge Mario não foi para a festa, foi para casa meditar. O “magrizela Bergoglio”, como na altura lhe chamavam, decidiu nesse momento que ia ser sacerdote. Era o dia 21 de setembro, dia de S. Mateus, motivo pelo qual o evangelista era tão importante para ele – nas frequentes idas a Roma, Jorge Mario costumava passar na igreja de S. Luís dos Franceses para contemplar a pintura de Caravaggio “Vocação de S. Mateus”.

Apesar de religiosa, a mãe reagiu mal quando ouviu o filho mais velho dizer que queria ser padre, pois, quando concluiu o liceu, a ideia dele era estudar Medicina. Mais tarde, já no seminário, a vocação de Jorge Mario foi posta à prova por causa de uma rapariga que conheceu no casamento de um tio. Durante uma semana, não conseguiu dormir de tanto pensar nela. Mas depois passou-lhe.

30 anos a estudar

Quando entrou no seminário de Villa Devoto, em Buenos Aires, já tinha o diploma de técnico químico. E continuaria a estudar durante os 30 anos seguintes, tendo também sido docente. Entrou no noviciado da Companhia de Jesus em Córdova, Argentina, em março de 1958, e pouco depois esteve no Chile, onde completou os estudos humanísticos. Em 1963, novamente no país natal, licenciou-se em Filosofia, tendo nos anos seguintes sido professor de Literatura e Psicologia. Entre 1967 e 1970, licenciou-se em Teologia. Fora ordenado sacerdote em dezembro de 1969.

Enquanto professor, não era tradicional nem solene e conquistava os alunos com perguntas simples. Aos 28 anos, num colégio em que dava aulas, chamavam-lhe “Carinha bonita”.

Eleito provincial dos jesuítas da Argentina (cargo que inclui o Uruguai) em 1973, saiu novamente do país em 1986, dessa feita para a Alemanha, para concluir o doutoramento. Poucos anos depois, era pároco em San Miguel.

Também foi reitor do Colégio Máximo de San Miguel, onde tratava dos porcos, cozinhava e lavava a roupa. No dia da criança, costumava servir no colégio chocolate quente. Organizava acampamentos no verão e muitas crianças viram o mar pela primeira vez graças a isso.

Nomeado bispo auxiliar de Buenos Aires por João Paulo II em 1992, já então incluía nos seus discursos temas como a pobreza, a educação e o diálogo entre religiões. Ascendeu a arcebispo no ano seguinte, por morte de Antonio Quarracino, e, em 2001, foi criado cardeal pelo mesmo Papa.

Como arcebispo de Buenos Aires, diocese com mais de três milhões de habitantes, centrou o seu projeto missionário na comunhão e na evangelização. Mantinha um estilo de vida simples, atendia qualquer pessoa que lhe batesse à porta e, apesar de nunca usar telemóvel, toda a gente sabia que era fácil encontrá-lo. Celebrava o lava-pés da Quinta-feira Santa com doentes, presos e nas maternidades. Aproximava-se dos doentes com sida (na altura, era grande o estigma em torno desta doença) e das mães solteiras. Também costumava visitar bispos ortodoxos, participava em cerimónias judaicas e punha a catedral à disposição de outros líderes religiosos para as celebrações mais importantes. “Não privatizemos o nome de Jesus”, dizia.

Créditos: Canção Nova

Recordado pelo bom-humor e por romper convenções

Homem afável e de extraordinária humildade mas firme nas convicções, era dono de um assombroso sentido de humor. Uma vez, deu uma sonante gargalhada a partir do papamóvel quando, no meio da multidão que o saudava numa visita a Filadélfia (EUA), avistou uma bebé vestida de Papa. No final de uma audiência no Vaticano, em maio de 2022, brincou com a própria saúde, ao dizer a um grupo de padres mexicanos que aquilo que lhe faria bem à dor crónica no joelho e na perna era “um pouco de tequilha”. Dias depois, voltou a fazer uma piada, quando foi abordado por um padre que lhe pediu que rezasse pelos brasileiros. “Vocês não têm salvação. É muita cachaça e pouca oração”, disse, para surpresa dos presentes, que se fartaram de rir.

Era também organizado, meticuloso, estratega. E, embora simples no trato, revelava um enorme à-vontade nos ambientes de poder.

Como todos os humanos, também tinha os seus momentos temperamentais. Zangava-se e discutia, mas sabia reconhecer o erro. Foi o que aconteceu depois do episódio protagonizado por uma mulher que o puxou, na Praça de S. Pedro, no último dia de 2019. Visivelmente aborrecido, o Papa repreendeu-a dando-lhe uma sapatada na mão e, no dia seguinte, pediu desculpa. “Muitas vezes, perdemos a paciência. Isso acontece comigo também. Peço desculpa pelo mau exemplo”, disse, a partir da varanda da basílica de S. Pedro. Poucos dias depois, fez questão de conhecê-la e recebeu-a numa audiência.

Também se via nele um profundo desapego pelas coisas materiais e pela pompa, mesmo aquela que advinha do facto de ser o chefe da Igreja Católica. Surpreendeu logo pela escolha do nome, Francisco, em homenagem a Francisco de Assis, padroeiro de Itália – “o homem da pobreza, o homem da paz”. Só aí, o Papa estava a ditar o seu programa, procurando recuperar os valores essenciais do evangelho: estar ao lado dos pobres, dialogar com todos, promover a paz.

Na primeira aparição ao balcão da basílica de S. Pedro, viu-se o Papa todo de branco. Francisco não quis usar a murça vermelha nem os sapatos da mesma cor (rompendo logo aí com a indumentária tradicional de que Bento XVI não abdicava), até porque usava calçado ortopédico, e o seu anel de pescador, modelo do escultor Enrico Manfrini, era de prata e não de ouro. A cruz que usava ao pescoço (que levou de Buenos Aires) também não era de ouro.

Andava de metro e de autocarro, como fazia na Argentina. Surpreendeu os cardeais quando, depois da eleição, foi para o local do jantar de autocarro e não na viatura oficial, uma limusina. Não raras vezes saiu à socapa da cidade do Vaticano para ir às compras. No dia seguinte à eleição, foi pagar a conta à residência internacional Paulo VI, onde era inquilino habitual nas visitas a Roma. Também era costume andar no papamóvel sem a proteção blindada.

Como Papa, recusou viver no palácio apostólico e escolheu a Casa Santa Marta, onde os clérigos costumam ficar hospedados, para não ficar isolado. O quarto era simples e tinha só os móveis essenciais, como a escrivaninha em que trabalhava. Poucos papéis, poucos objetos e entre estes figurava uma estátua da padroeira da Argentina, Nossa Senhora de Luján.

Os conservadores rotularam-no de populista e demagogo. Consideravam-no “demasiado argentino”, “muito Evita”, “muito paz e amor”, o que dessacralizava a imagem do Papa, diziam. Francisco sabia das críticas e respondia: “Dizem que sou populista porque estou com o povo? Então, sim, é verdade. Claro que sou populista”.

Um dia confessou que a palavra que mais gostaria de ver associada ao seu pontificado era “alegria”. Mas também se emocionava com atos de ternura, de compreensão, de perdão. Circunstância que sempre o fez sofrer foi a guerra, qualquer guerra.

Na série de conversas que manteve em 2016 com o sociólogo francês Dominique Wonton, vertidas no livro “Papa Francisco, Um Futuro de Fé”, contou como recebeu a notícia do fim da II Guerra Mundial. A mãe costumava falar com uma vizinha por cima do muro que dividia as casas, subindo a uma cadeira, e no dia 7 de maio de 1945, quando os alemães se renderam, a vizinha chamou a mãe de Jorge Mario e deu-lhe a boa nova. Ele, então com oito anos, estava a brincar no pátio e sentiu uma imensa alegria. “Não sei se foi o acontecimento mais importante, mas foi uma experiência que nunca esquecerei”, contou a Wolton, que lhe havia perguntado qual tinha sido o momento mais marcante da sua vida.

Logo que Francisco chegou ao Vaticano, não faltou quem lhe apontasse falta de solenidade para o cargo, principalmente os que viam em Bento XVI um Papa verdadeiramente intelectual. Longe de ser o “argentinito” que muitos diziam, Jorge Mario foi um estudioso e chegou a ser professor de disciplinas como Psicologia e Literatura.

Na entrevista que concedeu em agosto de 2013 ao padre Antonio Spadaro para a revista italiana “La Civiltà Cattolica”, falou das preferências culturais. Até então, pouco mais era conhecido além da admiração pela pintura de Caravaggio (“As suas telas falam-me”) e pela obra do escritor Jorge Luis Borges, que conheceu quando o convidou a ir ao colégio em que lecionava Literatura. Francisco levantou o véu sobre uma série de autores: Fiódor Dostoiévski, Friedrich Hölderlin, Alessandro Manzoni e Gerard Manley Hopkins na literatura; na música, Wolfgang Amadeus Mozart (“Mozart preenche-me: não posso pensá-lo, devo ouvi-lo”), Ludwig van Beethoven, Johann Sebastian Bach, Richard Wagner (“Gosto de ouvi-lo, mas não sempre”). Na pintura, também apreciava Marc Chagall. “Devo a minha cultura cinematográfica sobretudo aos meus pais, que nos levavam frequentemente ao cinema”, referiu na entrevista. Sobre “A Estrada” de Federico Fillini, disse: “É talvez o filme de que mais gostei”, sublinhando a referência implícita a S. Francisco. Outro dos seus favoritos era “Roma, Cidade Aberta”, de Roberto Rossellini.

Deixou muita obra escrita.

O momento do anúncio da morte do Papa Francisco

O Papa Francisco morreu, esta segunda-feira, às 7.35 horas (6.35 horas em Portugal continental). Tinha 88 anos. A notícia foi dada pelo Camerlengo Kevin Farell.

Fotogaleria Papa Francisco

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No centenário das aparições, em 2017, Francisco visitou pela primeira vez Fátima. Milhares assistiram na Cova da Iria, no dia 13 de maio, à canonização de Francisco e Jacinta Marto, crianças que considerou como “exemplo”, tendo em conta “a força para superarem contrariedades e sofrimentos”.

Na sua visita de menos de 24 horas a Portugal, fez apelos à “paz e concórdia entre os povos”.

Durante a sua presença no Santuário de Fátima, teve um encontro com o primeiro-ministro, António Costa, que lhe expressou a vontade de Portugal colaborar na promoção dos valores da proteção dos mais frágeis, como o acolhimento aos refugiados, a promoção da paz nas instâncias internacionais e o desenvolvimento de África.

Francisco reunira-se, logo à chegada a Monte Real, com o Presidente da República durante 10 minutos. Durante as cerimónias de 13 de maio, o então bispo de Leiria-Fátima, António Marto, saudou a “voz profética” de Francisco, capaz de abater muros, de lançar pontes e de dar voz a quem não a tem.

JN/MS

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