Mil novecentos e cinquenta e dois
A entrar no novo ano, em que celebraremos os 70 anos da imigração oficial dos portugueses para o Canadá, é oportuno recuarmos no tempo para tentar compreender um facto indiscutível: em 1952, era imensa a nossa ignorância acerca dos canadianos e a deles sobre nós, portugueses! Foi então que os dois países estabeleceram, pela primeira vez, relações diplomáticas e tudo mudou a partir dessa data! Em cada um de nós, luso-canadianos, há algo de confirmação e de testemunho desta realidade!
Quando, em 1978, entrevistei um imigrante de nome António Leandres, sobre a sua vinda para o Canadá, dizia-me ele a certa altura: “Em Santa Maria sempre trabalhei no campo, e a única maneira de melhorar a vida era sair dali. O meu desejo de emigrar já vinha de há muito tempo. Cheguei até a pensar no Brasil, mas lá na ilha chamavam-lhe “a terra dos esquecidos”. Os emigrantes iam e não voltavam mais. Diziam-me os mais velhos quando souberam que eu estava a tratar dos papéis para emigrar: “Vais para o Canadá? Eh rapaz, isso é uma terra medonha. Há lá bichos que comem as pessoas todas e só lhe deixam os pés”! Obviamente o sr. António Leandres percebera que o amigo estava a exagerar, mas ninguém sabia mais detalhes nem tinha familiares ou amigos que tivessem emigrado para estas terras.
Na minha família, tivemos a experiência do meu pai que andou balanceando em pequenos barcos (dóris) pelos mares do Canadá, na pesca do bacalhau com anzóis à linha, numa autêntica aventura humana que pouca gente hoje é capaz de compreender. Em 1952, fez ele a sua primeira campanha no navio Conceição Vilarinho, desembarcando em solo canadiano, ou como ele gostava de dizer, em São João da Terra Nova. E foi a partir dessa data, que em nossa casa se começou a pronunciar a palavra Canadá – o país para onde ele emigraria ao fim de mais quatro campanhas no bacalhau, e onde vivem hoje os seus 15 netos e bisnetos!
Se é verdade que em Portugal se sabia da existência de Newfoundland, onde há vários séculos vamos à pesca do bacalhau, a verdade é que até 1949, a Terra Nova era simplesmente uma colónia inglesa, governada por uma comissão britânica e não uma província canadiana. Muito pouco se sabia, na verdade, do Canadá ou dos canadianos em 1952. Antes disso os contactos oficiais e os laços históricos existentes entre Portugal e o Canadá – colónia inglesa, eram essencialmente relacionados com a pesca do bacalhau. Foi só após o estabelecimento das relações diplomáticas que os dois países uniram esforços para desenvolver um relacionamento nos domínios políticos e económicos que levaria anos a conquistar.
No dia 1 de janeiro de 1952, Portugal e Canadá inauguraram oficialmente missões diplomáticas, tendo o embaixador canadiano William Turgeon sido credenciado chefe da legação canadiana em Lisboa e por seu turno, Gonçalo Caldeira Coelho encarregado de negócios interino, assumindo a gerência da legação portuguesa em Ottawa.
E que sabiam de nós os canadianos, em 1952? Com exceção dos Terranovenses, aventuro-me a dizer: sabiam ainda menos do que nós. A minha convicção baseia-se na leitura de centenas de documentos encontrados nos arquivos portugueses e canadianos, nas conversas com dezenas de homens e mulheres que fizeram parte dos primeiros contingentes de imigrantes, chegados a estas terras nos anos 1950, e da minha própria experiência, pois cheguei a este país também há mais de 50 anos.
Citarei, como exemplos do mútuo desconhecimento e ignorância dos nossos dois países, extratos do relatório de Caldeira Coelho, referente à Emigração Portuguesa no Canadá.
Logo que as relações diplomáticas foram estabelecidas, Caldeira Coelho foi encarregado de preparar e organizar uma corrente imigratória para o Canadá. Começou do zero, pois não sabia quase nada. Consultou o Consulado de Montreal, a única representação portuguesa no Canadá, que o desencorajou, justificando que “os cidadãos portugueses que para aqui poderiam ser enviados como emigrantes têm um nível muito baixo e por isso virão constituir a classe mais baixa da população. Esse facto levará os canadianos a considerarem os portugueses em paralelo com os indivíduos de cor, como uma raça muito atrasada e incapaz de se adaptar ao meio”.
Caldeira Coelho, porém, não desistiu e iniciou “junto das autoridades da imigração canadiana uma série de diligencias destinadas a interessar o governo canadiano pela emigração portuguesa”. Ele relata: “Procurei pôr em relevo as virtudes simples, mas sólidas, dos nossos trabalhadores, a pureza (em matéria de cor) da raça dos habitantes de Portugal continental e das Ilhas dos Açores e da Madeira…” E continua: “Após laboriosas e inúmeras reuniões começou a notar-se uma certa recetividade das autoridades canadianas…”. “Uma vez notada essa possibilidade de entendimento, passei a pôr em destaque as vantagens de se fazer uma experiência com a emigração portuguesa…” “Desde logo também lembrei a vantagem de se selecionar um grupo que incluísse uma representação dos nossos principais agregados emigratórios de modo a permitir que as autoridades canadianas verificassem que não havia distinção entre os portugueses do Continente e das Ilhas. Esta última observação era destinada a remover as múltiplas reservas notadas nas conversas anteriores, em relação aos habitantes da Madeira e dos Açores, pois a ignorância geográfica dos altos funcionários do Ministério da Imigração fazia-lhes temer que os emigrantes oriundos das ilhas além de ‘latinos e católicos’ ainda por cima não fossem brancos”. (Página 30, Relatório Anual Referente a 1953 do Primeiro Secretário de Legação Gonçalo Caldeira Coelho).
É deveras difícil para nós, filhos e netos desses pioneiros portugueses que nos trouxeram para estas terras há 70 anos, compreender a complexidade e a dimensão da tarefa que foi abrir oficialmente as portas do Canadá aos nossos emigrantes!
Como dizemos por estas bandas, WE HAVE COME A LONG WAY!
Domingos Marques
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