70 Anos no Canadá

Foi há 70 anos que esta história começou…

Lembrem-se que fazem parte de um movimento desta tentativa de fixação de um grande número de portugueses no Canadá: – dos pioneiros depende o sucesso ou o malogro desta tentativa.
CANADÁ Instruções para uso dos emigrantes, p.12.

 

imigrantes - milenio stadium

 

Um dos pioneiros que entrevistei nos anos 70, foi o senhor Manuel de Sousa Arruda, nascido na Bretanha, São Miguel, Açores. Tinha ele 24 anos quando fez parte desse grupo experimental. E menos de 50 quando, cheio de emoção, me relatou a sua saga dessa viagem inesquecível.

A ele e a tantos outros homens e mulheres que me abriram as suas almas e as portas das suas casas para compartilhar um pouco das suas experiências, devo a inspiração para todo o trabalho que eu próprio desenvolvi, ao longo dos anos, sobre um assunto desconhecido, na altura, e que fez de mim, de alguma forma, um pioneiro também.

Manuel Arruda-retouchedO que se segue, é a história do senhor Manuel Arruda, contada há mais de 50 anos, na sua casa, num só fôlego, ali mesmo na Little Portugal. É afinal a história dos muitos milhares que se fixaram por estas terras e a quem dediquei na altura o livro “Imigrantes Portugueses…” :

“Aos homens e mulheres portugueses que tendo abandonado as suas terras, vieram para o Canadá à procura dum futuro melhor para si e os seus filhos; aos que o alcançaram e àqueles que continuam a labutar por ele; e a todos os que esta terra fria já comeu.”

“Em março de 1953, falou-se em São Miguel que precisavam de emigrantes para o Canadá. Não acreditei à primeira pois já antes tinha havido notícia semelhante e não passara de boato. Mas desta vez era mesmo verdade.

Eu ajudava a minha mãe viúva, a sustentar os meus 12 irmãos, quase todos mais novos que eu, trabalhando nas terras com uma vaquinha que o meu pai trouxera do Corvo, pouco antes de morrer. Aquela vaquinha já nos tinha dado algumas crias, mas a vida era uma sobrevivência, dia após dia. Quando o meu pai faleceu, eu tinha 12 anos e comecei também a ajudar numa moagem de farinha em sociedade com o meu tio, mas não dava para dar de comer a tanta gente.

Faltavam apenas dois dias para fecharem as inscrições em Ponta Delgada quando me fui inscrever. Preenchi aquela papelada como quem comprava um bilhete de lotaria. Um inspetor da Emigração que veio de Lisboa, o senhor Ferreira da Costa, fez-me um exame escrito e uma longa entrevista sobre tudo o que tínhamos de fazer, caso fôssemos escolhidos e pareceu muito contente comigo e com as minhas respostas. Ele procurava homens para a agricultura que soubessem trabalhar nas terras. E isso sabia eu fazer bem. Íamos ser colocados num “farm” com um contrato de um ano, trabalhar 8 horas por dia, ganhar $55 dólares por mês, cama e mesa incluída em casa do agricultor. Explicou-me também o inspetor, que eu tinha de levar quinze contos na viagem para as despesas em Lisboa e para me sustentar até ao destino final. Aí eu disse-lhe: O melhor é o senhor cortar-me e pôr outro no meu lugar, porque eu não vou arranjar quem me empreste tanto dinheiro para poder emigrar.
O inspetor que foi como um pai para mim, garantiu-me que ele próprio pagaria as despesas das radiografias caso eu reprovasse na inspeção final. Fiquei mais animado e em casa depois de falar com a minha mãe, ela disse-me: “Se a sorte der para isso, há-de se arranjar o dinheiro, meu filho”. E ela, através dum vizinho que ficou meu fiador, conseguiu que o banco emprestasse o dinheiro para a viagem.

No dia 21 de abril partimos para Lisboa a bordo do paquete Carvalho e Araújo. Éramos vinte rapazes de São Miguel, ansiosos, mas todos esperançados numa vida melhor. A viagem até ao continente foi difícil. O céu estava fechado e no mar uma tempestade assustadora. Foram quatro dias cheios de tumultos e saltos pelo mar alto. Os pratos deslizavam das mesas, as pessoas corriam aflitas para a casa de banho. Era como um aviso das dificuldades que nos esperavam.

Antes de desembarcar, entregámos os quinze contos ao inspetor Ferreira da Costa que achou não ser prudente entrar na capital com tanto dinheiro no bolso. Em Lisboa fomos hospedados na Junqueira, onde comemos e dormimos, durante duas semanas, até sermos aprovados pelos médicos e inspetores canadianos. Dois rapazes foram rejeitados pelos médicos canadianos e não seguiram viagem connosco, – um era dos Arrifes e o outro do Livramento. O inspetor foi tão bom para eles que lhes perdoou as despesas e os puseram no paquete Vera Cruz, com 15 contos na algibeira e uma carta de trabalho para começar, logo que desembarcassem no Brasil.
No dia 8 de maio, partimos finalmente em direção à terra prometida do Canadá. A viagem, desta vez no navio Satúrnia, foi bem suave e para muitos uma festa. Vinham centenas de emigrantes. Havia uma capela com missa cada manhã, música e dança e um bar onde se bebia como se o mundo fosse acabar. A língua dominante no barco era o italiano. Nós portugueses, mais sossegados e medrosos, não chegávamos a uma centena: 18 açorianos e 67 continentais que na maioria se mantinha juntos e em rebanho, acatando as ordens do inspetor Ferreira da Costa.

Era meia noite quando chegámos ao porto de Halifax, a 13 de maio de 1953. E aí a festa acabou. Fomos postos com as nossas malas num comboio velho que levou dois dias até Montreal. Não sabia falar para pedir fosse o que fosse. Comi pão e um doce durante os dois dias de viagem, sempre a chover até chegar a Montreal, com o rosto preto do carvão e o fato da viagem enfarruscado!

 

O primeiro grupo de açorianos (da ilha de São Miguel) a emigrar para o Canadá, em 1953. Topo: Evaristo Almeida, José Botelho, José Bento, António Couto, Agostinho Martins, Manuel Machado, Guilherme Cabral, Jaime Cardoso. Centro: Armando Vieira, Afonso Cabral Tavares, Eugénio Sousa, João Martins, Manuel Arruda, Manuel Vieira. Baixo: Vasco Oliveira, Victinho Martins, Ferreira da Costa (o inspector), Manuel Pavão, José Martins. Foto DR

 

Em Montreal fomos alojados na pensão dos imigrantes que ficava na Rua Saint Antoine. No dia seguinte, fui levado para uma casa da Imigração, em Sherbrooke, Quebec. Aí, puseram-nos um cartão, verde clarinho, na lapela do casaco. Éramos agora seis tristes rapazes de Ponta Delgada, à espera que os patrões nos viessem buscar. Em pouco tempo começámos a perceber que aquilo era como uma arrematação. Os mais rijos ou os maiores iam primeiro. Eu e mais dois rapazes fomos entregues a agricultores daquela região. Os outros três – dois das Feteiras e um da Candelária, foram abandonados na estação. À noite, alguém chamou a polícia, pensando que eram foragidos. Através dos passaportes perceberam que eram imigrantes portugueses e, com a ajuda dum padre que tinha estado no Brasil, acabaram por resolver a situação.

Os serviços agrícolas eram muito diferentes daquilo a que estávamos habituados nos Açores. Depois de ter tirado o leite às vacas, o patrão levava-me no trator, lá para longe, com um machado e uma serra, e, através de gestos, fazia-me compreender que eu tinha de pôr abaixo aquelas árvores todas. À noite, vinha buscar-me para jantar. Isto era em maio. A terra estava alagada de neve a derreter-se, aos poucos. As botas, que eu trouxera da minha terra, eram péssimas para passar o dia a cortar lenha naquelas condições.

Ao fim de quatro dias, esperava-me uma surpresa. O patrão chamou-me, entregou-me oito dólares e mandou-me fazer as malas. Depois pôs-me no carro e levou-me para outra quinta. Ali, se não tivesse fugido, morreria à fome. Às quatro da madrugada, o patrão batia-me à porta do quarto para eu sair da cama. Tinha de tirar o leite a cerca de quarenta vacas, dar-lhes de comer e limpar os currais. Logo chegava a hora do almoço. E que almoço! Em poucos minutos estava o patrão a saltar da mesa e eu a correr atrás dele para semear batatas na terra. Não havia tempo para almoçar e depois vinha a hora de tratar das vacas novamente. Enfim, era das quatro da manhã às dez da noite.

Uma semana depois, apareceu lá o inspetor da Junta da Emigração Portuguesa, um senhor Rui San-Romão, juntamente com o padre Almeida do Consulado de Montreal e eu contei-lhes a situação miserável em que vivia. “Por favor, tirem-me deste patrão, quando não, eu morro aqui’, supliquei. E pedi-lhes que, caso não encontrassem outro patrão, me mandassem para os Açores, porque ali é que eu não podia viver. Tentaram acalmar-me, e encorajaram-me, prometendo-me encontrar outro trabalho. Eu garanti-lhes que só esperaria até domingo e, se eles não cumprissem o prometido, eu iria para Montreal. E assim aconteceu.

Nesse dia, à tardinha, o telefone do patrão tocou.

“Manuel… disse a minha patroa e passou-me o telefone.
“Alô? Era uma senhora do outro lado, em inglês, não entendia nada e devolvi-o à patroa. Segundos depois, ela entregou-me novamente o telefone e gesticulou para eu esperar.
Do outro lado, uma voz masculina, alô, alô…
Quem é que está a falar?- pergunto eu!
Ó Senhor Santo Cristo dos Milagres, tu falas português?
Eh pá, quem és tu?
Ó corisco, eu sou o José Martins da…
Eu o Arruda… o Manel da Bretanha. Onde é que tu estás?
Eu não sei… estou no inferno!

O rapaz na verdade estava pior que eu. Contou-me então que o inspetor e o cônsul o tinham visitado, deixando uma lista com os nomes dos seis emigrantes colocados em Sherbrooke e seus respetivos patrões. O meu nome era o primeiro da lista. Depois, em choro convulso, explicou-me que o patrão o pusera a construir a casa nova. E ouvi queixas de mãos a sangrar, e a barriga vazia porque não havia tempo para comer e passava o dia com a pá na mão. Os patrões do José Martins trouxeram-no para junto de mim para que ele parasse de chorar. Ali mesmo, já noite dentro, os dois combinámos fugir. E no domingo seguinte, como eu tinha garantido ao inspetor da Junta, partimos, de comboio para Montreal.

O nosso calvário, porém, ainda não havia terminado. Era quase meia-noite quando chegámos à estação. Sentámo-nos num banquito lá fora, a conversar e o José reconheceu, à distância, a Casa da Imigração. Esperançados corremos para lá e tentámos pedir ajuda, mas puseram-nos na rua, sem grandes protestos da nossa parte. Voltámos para a estação e decidimos dormir ali mesmo, junto às bilheteiras. Depois apareceram os seguranças que após verificarem os nossos passaportes nos levaram à tal Casa da Imigração. Ali, o mesmo fulano que nos mandara para a rua, foi forçado a ajudar-nos, encontrando alojamento num dos hotéis locais, onde passámos a noite. A dormida custou-nos três dólares cada, ou seja, três dias de trabalho para o José e um e meio para mim. Às oito da manhã, estávamos de volta na Imigração, onde conseguimos o endereço aonde nos devíamos dirigir para arranjar emprego. De malas às costas, caminhámos tempo sem fim, guiados pelos gestos dos polícias que nos apontavam o caminho. Chegámos finalmente a um edifício que, hoje sei ser o Centro de Mão d’Obra de Montreal. Sentámo-nos a ouvir os altifalantes que ressoavam, um a um, os nomes daquela multidão resignada e calma. Horas depois, como não fôssemos chamados, o José encheu-se de coragem, levantou-se e encontrou um dos funcionários que nos havia assistido aquando da nossa chegada, duas semanas antes. Depois de lhe mostrar os nossos passaportes, o homem levou-os lá para dentro e mandou-nos esperar. E eu disse cá para comigo: agora é que estamos arranjados. Se nos roubam os passaportes, nunca mais poderemos voltar à nossa terra e ainda vamos para a cadeia.

Às duas da tarde, ouvimos uma voz no altifalante: “José Martin, José Martin…” mesmo cheios de fome demos um salto, era a nossa vez. Atendeu-nos uma senhora de língua espanhola que nos pôs, ali mesmo, em contacto com o cônsul, o tal Padre Almeida. Ao telefone, dissemos-lhe redondamente que não estávamos dispostos a sofrer mais aquelas condições de vida. Por fim, eu explodi:

“Nós viemos com um contrato da emigração que não está a ser cumprido. Daqui o senhor padre vai tratar de nos pôr em Portugal, a não ser que nos arranje um patrão, para onde possamos ir juntos, onde haja comida com fartura e onde nos deixem ir à missa ao domingo”.

“A missa não faz parte do contrato. Vocês vieram cá para trabalhar e ganhar a vida.”

Foi esta a resposta do tal Padre Almeida que jamais esquecerei. Não era o trabalho que nos metia medo. Nós estávamos habituados a trabalhar de sol a sol, mas ali éramos escravizados, as condições eram péssimas e tinham que ser melhoradas. E foram. Essa senhora espanhola encontrou-nos um patrão muito razoável: cama e mesa com boa comida, trabalho no campo das sete às sete, e cinquenta e cinco dólares por mês.”

Domingos Marques

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