70 Anos no Canadá

Curiosidades e relíquias encontradas nos arquivos da imigração

 

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Quantos portugueses fizeram a célebre viagem no Satúrnia, até Halifax?
A foto tirada naquele navio italiano, no dia 13 de maio de 1953, foi publicada pela primeira vez em 1978, no livro “25 Anos no Canadá”. Desde então tornou-se símbolo da imigração portuguesa para o Canadá. Muitos de nós já tentaram, ao longo dos anos, encontrar um parente ou conhecido naquela foto histórica. Olhando com atenção, vê-se que há pelo menos uma criança na foto, além do capitão do navio e o inspetor da Junta da Imigração, Mário Ferreira da Costa.

É necessário compreender que o navio era um meio de transporte usado e não se destinava somente ao primeiro contingente de portugueses selecionados para emigrar para o Canadá. Com eles vinham muitos outros passageiros de várias nacionalidades. Afinal quantos eram aqueles homens? Quando iniciei a minha primeira pesquisa nos anos 1970, depois de entrevistar os imigrantes, conclui que eram 67 homens e foi isso que ficou registado no citado livro. Mais tarde, quando completei a minha pesquisa nos vários arquivos, tanto portugueses como canadianos, descobri que afinal os números não batiam certo. Sempre houve discrepância entre as estatísticas canadianas e portuguesas, por razões que só mais tarde vim a compreender. Neste caso sabemos que 200 foi o número inicialmente negociado pelas duas partes. Cem madeirenses que vieram em navio diferente (Nea Hellas) e 100 continentais, aos quais foi subtraído o total de 20 lugares para acomodar 20 “farm workers” de S. Miguel. No fim somente 82 deste grupo receberam os respetivos visas, já que dois açorianos chumbaram as inspeções médicas e, pelo menos um do continente adoeceu e parece que ficou em terra. Se tivesse de fazer uma aposta, diria que o grupo dos imigrantes pioneiros que viajou no Satúrnia era formado por 81 ou 82 homens.

 

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O mistério dos dois açorianos que trocaram o Canadá pelo Brasil

O senhor Manuel Arruda foi quem primeiro me falou em dois açorianos que não seguiram viagem no navio Satúrnia. Já lá vão muitos anos, quando aconteceu essa minha primeira entrevista com aquele imigrante pioneiro, falecido em 2020. Fiquei deveras intrigado com essa história e nunca mais desisti de desvendar o mistério.
É um facto que, durante as negociações entre o Canadá e Portugal para a abertura oficial da imigração, os funcionários portugueses preferiam que se começasse pelas ilhas, pois a pressão maior vinha dali. Contudo, por ignorância e conveniência, os canadianos revelavam alguns preconceitos contra os portugueses das ilhas e preferiam os do continente. Concordaram, no entanto, a deslocarem-se a Lisboa e ao Funchal, mas não a Ponta Delgada. No fim, tudo ficou acertado quando aceitaram a ideia de incluir, no contingente continental, um grupo experimental de apenas 20 açorianos, na condição deles se apresentarem em Lisboa. E assim foi. Vinte rapazes foram escolhidos a dedo em Ponta Delgada, viajando no navio Lima no dia 21 de abril. Garantiu-me o senhor Manuel Arruda que dois dos rapazes, selecionados em Ponta Delgada, acabaram por não viajar para o Canadá, por não terem passado nas inspeções médicas canadianas. Segundo ele, os funcionários da Junta da Imigração enviaram-nos para o Brasil, por “vergonha de terem de voltar para a sua terra”.

Entrevistei, posteriormente, muitos outros pioneiros açorianos e fiz questão de trazer o assunto para a nossa conversa. Embora muitos me confirmassem essa história, ninguém foi capaz de me dar os seus nomes. Não desisti. Vasculhei documentos pelos arquivos de Ottawa, Lisboa e Ponta Delgada, sempre na esperança de encontrar as listas desses 20 rapazes selecionados em Ponta Delgada mas nunca as encontrei. Dos arquivos de Ottawa, obtive a lista das centenas dos açorianos que viajaram em 1954. Assim como uma lista incompleta dos madeirenses e continentais de 1953. Quando voltei a Ottawa, nos anos 90, para completar o projeto “With Hardened Hands”, tive acesso à lista dos imigrantes de 1953 que tinham sido recusados pelos inspetores canadianos. Finalmente, numa recente visita a Ponta Delgada, pude ver a lista de todos os passaportes concedidos pelo Governo Civil até 1 de abril de 1953 e EUREKA! Os dois aparecem, não como açorianos, mas na lista de Lisboa e Porto e são: José Cordeiro Amarelo, trabalhador agrícola, solteiro de 27 anos, natural de Arrifes, Ponta Delgada, e Ricardo Cordeiro trabalhador agrícola, solteiro de 25 anos, natural de S. Roque. Tarde demais certamente para saber do seu paradeiro, já que, se forem vivos, terão agora 96 e 97 anos. Será que foram mesmo para o Brasil? Será que algum leitor pode ajudar? A saga continua…

Quando for escrito o último capítulo…

A Biblioteca e Arquivo Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, instalados no Palácio das Necessidades em Lisboa, têm sido, ao longo dos anos, um dos meus lugares favoritos de pesquisa sobre a imigração portuguesa para o Canadá. Nos anos 70, nas minhas primeiras visitas, era óbvio que grande parte dos dossiers, listados como “Confidenciais”, estavam ainda sem autorização para acesso do público em geral. O 25 de Abril tinha acontecido há relativamente pouco tempo. Os funcionários que tomavam as decisões em cada pedido, reviam os documentos decidindo-se pela segurança, não arriscando a abrir ao público algo que pudesse comprometer os seus autores. Na minha última visita, durante o verão passado, foi evidente o melhoramento e progresso conseguido pelos funcionários do Arquivo.

Cinquenta anos depois da Revolução, encontrei um manancial de manuscritos e registos verdadeiramente singulares que abrem uma janela enorme ao mundo antigo dos cônsules, embaixadores e tantos outros funcionários da diplomacia em geral. A maioria das descrições e notícias são benignas e informativas como por exemplo, a notícia da inauguração do “Madeira Park” de Toronto em julho de 1964. Há outros documentos, contudo, que nos fazem abrir a boca de espanto, como por exemplo os comentários sinistros dum cônsul sobre um líder da então recém-formada comunidade portuguesa de Montreal.

Há também um recorte de jornal, infelizmente não datado, com um artigo longo, fascinante e título enormíssimo: “Lição aos Incautos – Amarga Odisseia de um Emigrante que viu Cruelmente Frustrado o Sonho de uma Vida Melhor em Terras Estrangeiras”. É a transcrição dum original de “O Setubalense” e publicado “com a devida vénia” pelo “Diário Popular”, narrando a odisseia dum imigrante que nos 1950 foi para o Canadá, desanimou e, dirigindo-se ao Consulado português, pediu para o repatriarem. Responderam-lhe que não tinham verba para repatriamentos. Disseram-lhe que “só poderia regressar se estivesse louco ou atacado de doença grave…Pensei ir para o corte de madeiras, mas voltei a adoecer. Vi que, se ali continuasse, era o fim. Graças a Deus que os meus pais puderam dar-me de novo a vida e mandaram-me dizer que iam pagar a viagem do meu regresso”. Quando conclui a leitura desta reportagem, somente uma figura bailava na minha cabeça, o autor de “Bastardos da Pátria”, Lourenço Gonçalves, que viveu entre nós, em Toronto, nos anos 1960.

Há, todavia, muitos mais documentos como este, fascinantes para historiadores e sociólogos. As guerras e quezílias nas associações das “colónias” como eram denominadas as nossas comunidades; o esforço dos cônsules e políticos para subornar os jornais comunitários a defenderem o Estado Novo, etc. Mas acima de tudo manuscritos e documentos que nos ajudam hoje a compreender melhor os desafios que enfrentaram esses pioneiros – os nossos pais e avós, quando chegaram a estas terras, pavimentando o caminho para os que chegam nos nossos dias.

Domingos Marques

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