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Uma memória no bolso

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Temos vivido na convicção de que seria possível continuarmos em paz por muitos mais anos. Nos últimos dois, porém, e de forma metafórica, habituámo-nos a usar uma linguagem de cariz bélico. Era preciso combater, era preciso lutar contra um inimigo que ninguém conhecia, mas se fizera hóspede das nossas casas, das nossas escolas, dos nossos lares, de todos os nossos espaços, para, repentinamente, nos atirar para os hospitais e, no limite, acabarmos deitados em morgues. O mundo uniu-se nessa guerra e foi lentamente ganhando batalhas, ao ponto de quase podermos dar o inimigo como rendido.

Este inimigo insinuara-se sem aviso, e só dele demos conta quando os efeitos da sua presença se começaram a sentir no corpo de cada um de nós. Assistimos a mortes, muitas mortes, e, de início, sentimo-nos impotentes para o combater porque sabíamos muito pouco sobre a estratégia da defesa a utilizar. Um esforço coletivo fez-nos caminhar juntos até chegarmos a momentos de tréguas, que nos permitiram abrir as fronteiras sanitárias para podermos, livremente, voltar a circular.

Não se tratou de nenhum país ou de um povo que se tenha voltado contra nós. A guerra que até agora descrevi tem sido contra a Covid19 que, apesar de tudo, não está completamente vencida. Aqui e ali continuam a existir ligeiros combates, mas não já a um nível que permita reacender os focos iniciais.

Após dois anos separados de afetos – impedidos de nos tocarmos, de nos beijarmos de nos abraçarmos -, eis-nos confrontados com uma nova guerra. Nova, apenas porque inesperada, mas velha na forma como se desenrola, com meios que julgávamos fazerem parte do passado. As imagens que nos entram em casa pouco diferem daquelas que o cinema imortalizou em filmes e séries: a negritude da noite rasgada por clarões laranja das explosões e rebentamentos sobre alvos civis; destroços espalhados nas cinzas da terra queimada onde os metais retorcidos e calcinados são testemunhas da violência utilizada; caves de casas, de prédios, das estações de metro a servirem de “bunkers” improvisados, de cada vez que se ouvem as sirenes para o recolher; lagartas dos tanques a percorrerem extensões de solidões humanas, em contraste com as filas de gente em fuga: avós, mães e netos, a caminharem unidos pelo desespero de encontrar lugares seguros, levando nas mãos as malas cheias de capítulos de vida reduzidas a uma página de necessidades; despedidas de famílias partidas entre homens que ficam para lutar e mulheres e crianças que saem para se salvarem; a forte resistência ao invasor e a vontade dos que estão espalhados pelo mundo de se alistarem para defender o chão onde nasceram; as mulheres que, apesar de terem o direito de se resguardarem, os acompanham porque acham que na guerra também há lugar para elas; crianças que choram, mas a quem não é possível explicar o que significa a palavra guerra; por entre chão e paredes a servirem de casa, a voz de uma mãe que, cerrando as lágrimas por entre os dentes, responde à filha. “Esta agora é a tua casa, a nossa casa!” Lembrei-me da canção de Vinicius de Moraes, que tantas vezes cantei aos meus filhos: “Era uma casa muito engraçada/ Não tinha teto, não tinha nada/ Ninguém podia entrar nela não/ Porque na casa não tinha chão.”

No conforto da minha casa, sou eu quem fica sem chão perante uma imagem que, entre tantas, particularmente me tocou. A de um homem de 80 anos, com uma mala na mão, que se foi oferecer para combater. Em nome dos netos – disse ele. Porque esta é a memória que lhes quer deixar no bolso – o chão de um país onde possam continuar a florir girassóis voltados para a luz da liberdade!

Aida Batista/MS

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