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Um problema de fé

 

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Portugal é sinónimo de muita (e, na sua maioria, boa) coisa, mas se tivéssemos que resumir diríamos que é um país dono de uma natureza única, uma riquíssima história, boa comida, excelentes costumes e que o seu povo é bastante ligado à religião. De facto, a população portuguesa é, na sua maioria, católica (79,5%) e tal evidência pode relacionar-se, entre outros fatores, com a tradição e com todas circunstâncias históricas que Portugal viveu até aos dias de hoje.

Ainda assim, e segundo os dados do mais recente estudo sobre religião no país do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião e do Centro de Estudos de Religiões e Culturas da Universidade Católica Portuguesa (UCP), com o patrocínio da Conferência Episcopal Portuguesa e coordenado pelo antropólogo Alfredo Teixeira, este número caiu, pela primeira vez, para baixo dos 80% – em 1999 a percentagem era de 86,9%. Já segundo as estatísticas da Conferência Episcopal, referentes a 2014, o cenário é ainda mais negro: apenas 77,03% dos inquiridos dizem ser católicos. Em sentido inverso seguem aqueles que admitem não pertencer a nenhuma religião – de 8,2% para 14,2% – e os que professam outras religiões – de 2,7% em 1999 para 5,7% em 2011: algo que, segundo o Padre João Paulo Henriques é “uma confirmação de que somos seres intrinsecamente religiosos”.
Diácono desde novembro de 2005 e ordenado padre em julho 2006 com apenas 25 anos, João Paulo Henriques aceitou responder às questões do jornal Milénio Stadium para percebermos, afinal, de que forma e porque é que a relação dos portugueses com a religião está a mudar.

Milénio Stadium: A Páscoa é uma das maiores celebrações religiosas – ainda assim, e à semelhança do Natal, cada vez mais famílias olham para esta data apenas como um momento de convívio e outros até encontram, no caso da Páscoa, a altura perfeita para fazer umas mini-ferias. Concorda que tem vindo a crescer esta desassociação da tradição religiosa no que concerne a estas datas?
Padre João Paulo Henriques: Essa é uma evidência. E nas férias de Páscoa – ou primavera como também se diz – até é possível escolher como destino um lugar religioso. Existe mesmo um conceito de turismo religioso em que o turista encara as celebrações pascais como um espetáculo! Mas esta evidência é o resultado de muitos fatores e de um processo de secularização que começou há mais de 100 anos. Aponto apenas um certo cristianismo sociológico que se observa: muitos dos que se afirmam cristãos guardam algumas práticas essenciais como o Batismo, ou a Missa em dias festivos ou lutuosos, mas deixaram cair o essencial da fé: a relação interior com Deus e com a comunidade dos irmãos que Jesus veio trazer. Não quer dizer que a fé não exista de todo, mas ainda tem muito para crescer. Logo não admira que se cada um não cultivar essa relação com Deus e com a Igreja, dificilmente pode entrar no significado profundo do acontecimento Pascal deixando-se ficar apenas por alguns elementos da festa.

MS: Apesar de, em muitos casos, absorvermos determinados costumes e/ou práticas que nos chegam através de pessoas de outros países que escolheram o nosso para mudar de vida ou simplesmente para se estabelecerem, sabemos que ainda existem tradições que não “passam de moda”, por assim dizer. Em Portugal são muitos os símbolos ligados ao Dia de Páscoa: para além do folar e das iguarias típicas, existem também as procissões e o Compasso Pascal. Consegue notar diferenças de há uns anos para cá? Sente que as portas das casas, que antes se abriam para a visita do pároco, estão hoje, na sua maioria, fechadas?
PJPH: A Visita Pascal é uma tradição antiquíssima. Nasce como bênção anual da família e da casa, bênção que é a consequência da salvação trazida pela Páscoa de Jesus. Como na questão anterior, muitos continuam a manter este costume, mas muitos outros guardam o sentido profundo deste gesto como momento de fé. Como pároco de uma zona mista urbana/rural/industrial, posso verificar que a situação se alterou profundamente nos últimos 30 anos em que se contavam pelos dedos das mãos as portas fechadas. Sem distinguir propriamente os núcleos populacionais, verifico que talvez mais de metade da população passe hoje indiferente à Visita Pascal. Mais uma vez continuo a achar que esta indiferença tem a ver com o problema de fé enunciado na resposta à questão anterior. Problema este que é transversal aos diferentes grupos sociais que compõem esta comunidade.

MS: Será que podemos atribuir este continuar das tradições religiosas – ainda que provavelmente em menor número, como falávamos anteriormente – ao facto de Portugal ser, ainda hoje, um dos países mais religiosos da Europa?
PJPH: Não sei se somos dos países mais religiosos. Talvez! O que é certo é que se o número de crentes diminuiu nos últimos anos, também é certo que a Igreja continua viva e atuante, como fermento no meio da massa, em todas as terras deste país. Por essa razão, os crentes mantêm alguns elementos das suas tradições que procuram ser também uma forma de evangelização. Por exemplo, em Braga, uma das maiores procissões, conhecida como a da Burrinha, é uma autêntica catequese Bíblica capaz de despertar o desejo da fé.

MS: Ao longo do tempo vão sendo difundidos vários exemplos de jovens que optaram por dedicar a sua vida a Deus. Ainda assim, é também conhecida a resistência que grande parte da juventude tem em relação à igreja, sendo que muitos apontam o dedo, por assim dizer, à “condenação” que sentem por parte da instituição face às suas escolhas. Concorda? De que forma é que se conseguiria atrair mais crianças e jovens adultos para a igreja?
PJPH: Na adolescência somos contra tudo, não somos só contra a Igreja! O problema reside quando neste período não somos capazes de os acompanhar. Um adolescente cresce desenfreado e precisa de referências, de esteio para crescer bem. Este acompanhamento é em primeiro lugar na Família, mas também na Igreja. Encontrar uma linguagem que seja significativa para a juventude não tem sido fácil. A sociedade, por seu lado, propõe outros caminhos, às vezes mais atrativos, com os quais a Igreja não pode nem tem por missão concorrer. A Igreja é propositiva, como Jesus, não coagindo ninguém, mas deixando à liberdade de cada um a decisão de fé. E a fé cristã traz exigências pessoais que nem sempre são queridas. Quando Jesus se encontrou com o “jovem rico” convidou-o a dar tudo o que tinha e a segui-l’O, mas o jovem “retirou-se pesaroso”.

MS: Por outro lado, vemos também que muitos – e cada vez mais, segundo as estatísticas – se identificam com outras crenças religiosas. Como é que olha para esta realidade?
PJPH: Como uma confirmação de que somos seres intrinsecamente religiosos. A nossa busca de sentido para a vida e a integração do transcendente na nossa existência é uma característica de todos os homens. Nesta busca podemos passar por vários caminhos e tradições religiosas e espirituais e em todas as que são autênticas, digo-o como cristão, os homens encontrarão sinais da bondade de Deus e pistas que conduzem ao Salvador. Há, no entanto, formas de “religião” oportunistas que nada têm a ver com a verdadeira religião. Deixo também o alerta para muitas pseudo-religiões/espiritualidades comerciais cujo único interesse é económico.

MS: Gostava de lhe pedir uma avaliação do pontificado do Papa Francisco, principalmente sobre o seu papel na reforma da igreja, no diálogo inter-religioso e até como sendo ele próprio um elemento pacificador.
PJPH: O Papa é o Bispo de Roma e tem como missão histórica ser sinal da unidade de todos os que acreditam em Cristo. No seu jeito próximo, o Papa Francisco tem procurado não parecer o que alguns injustamente lhe chamam: Chefe da Igreja Católica! Tem sido servidor, a seu jeito, de uma Igreja que se quer mais fraterna, mais comunidade de irmãos. Quanto mais a Igreja caminhar para esta unidade dos que acreditam em Jesus, procuram celebrar a sua fé em conjunto e vivê-la na dispersão da vida, tanto mais a Igreja será autêntica. O Papa Francisco, na senda dos anteriores papas, tem procurado fazê-lo e, do meu ponto de vista, muito bem. Aproveita o seu lugar mediático para, através dos seus gestos e palavras, dar testemunho do seu coração crente no qual quer deixar bater o coração do próprio Jesus.

MS: Por fim, considera que a Covid-19 veio afastar ainda mais as pessoas da igreja? Ou, pelo contrário (e apesar de, num primeiro momento, possa ter existido algum receio em voltar a marcar presença por medo de contrair a doença) ainda aumentou a fé daqueles que acreditam em Deus?
PJPH: Ainda é muito cedo – estamos ainda em pandemia – para fazer essa avaliação. No entanto penso que não será um elemento importante no que ao aumento ou diminuição da fé diga respeito.

Inês Barbosa/MS

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