Ex-presidente parte sem nunca ter comprovado a inocência perante as acusações de grande corrupção e de desvio de património do Estado em benefício da família. Cinco mulheres, dez filhos e uma vasta prole com uma herança incalculável. E um país esgotado pelo escândalo.
O filho do calceteiro Avelino Eduardo dos Santos e da doméstica Jacinta José Paulinho, nascido e rebelado, segundo quase todas as biografias, nas sanzalas do Bairro da Sambizanga, na Luanda colonizada, morreu esta sexta-feira, aos 79 anos (nasceu a 28-8-1942), numa das mais caras, modernas e sofisticadas clínicas do Mundo, em Barcelona. José Eduardo foi presidente e governou como rei absoluto de Angola durante quase quatro décadas (1979-2017). Deixa muita pegada e não propriamente a de maior nobreza: vai acusado de todas as derivas antidemocráticas e de se ter apropriado de avultados recursos nacionais, para ele, para todo o clã Dos Santos e para o círculo de amigos mais próximos.
José Eduardo dos Santos estava internado no Centro Médico Teknon desde 23 de junho último, na sequência de uma queda num quarto de banho, ocorrida na mansão onde residia, no Bairro Pedralbes, numa das zonas mais exclusivas de Barcelona. O acidente doméstico agravou-lhe o estado de saúde, já debilitado na luta dos últimos anos contra um cancro, e precipitou-lhe a partida, longe do torrão natal.
O antigo presidente tinha abandonado Luanda em abril de 2019, oficialmente por razões de saúde. A imunidade que a Constituição angolana confere ao chefe de Estado, mesmo após o exercício do cargo, protegia-o de qualquer perseguição judicial, mas os círculos mais próximos de José Eduardo, incluindo a família, não foram poupados pela operação “mãos limpas” encetada desde 2017 pelo sucessor no Palácio Presidencial, um delfim do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), João Lourenço, antigo ministro da Defesa.
Por todo este rasto – sobretudo, por causa desta que julga ser uma vaga punitiva -, o clã dos Santos está muito renitente em autorizar a transladação do corpo do antigo presidente para Luanda, para um funeral com honras de Estado, no país pelo qual José Eduardo lutou, contra o colonialismo, até à independência, em 1975.
Mais ou menos autorizadas, todas as narrativas de vida enaltecem o percurso do militante do Movimento Popular de Libertação de Angola, a que se juntou com apenas 16 anos, em 1958, logo nos primórdios do partido fundado por Agostinho Neto e Viriato Clemente da Cruz. Por essa altura, nos tempos do Liceu Salvador Correia, o jovem ativista do MPLA já frequentava os corredores clandestinos que se opunham ao regime. Em 1961, aderiu à eclosão da luta contra a colonização portuguesa e nesse mesmo ano foi um dos fundadores da Juventude do MPLA, que passou a coordenar desde o exílio na República do Congo.
Foi o primeiro representante do MPLA em Brazaville e ingressou no Exército Popular de Libertação de Angola, braço armado do MPLA. Ainda em 1963, beneficiou de uma bolsa e foi estudar para a então República Socialista Soviética do Azerbaijão. Seis anos depois, saiu do Instituto do Petróleo e do Gás com a licenciatura em engenharia dos petróleos. Lá na Universidade de Baku conheceu a primeira mulher, Tatiana Kukanova, e casou-se pela primeira vez. A única filha do casal, Isabel dos Santos, nasceu nas margens do Cáspio, a 20 de abril de 1973.
Regressado a Angola, na clandestinidade, dirigiu as telecomunicações da 2.ª Região Poltítico-Militar do MPLA, em Cabinda. Ainda em 1974, após comissões de representação política e diplomática na ex-Jugoslávia e na China, foi eleito para o Comité Central do MPLA. Foi só o ingresso definitivo na nomenclatura do partido.
A 11 de novembro de 1975, à data da proclamação da Independência de Angola, foi nomeado ministro das Relações Exteriores e foi nessa função que teve um desempenho fulcral pelo reconhecimento diplomático do Governo do MPLA, na aurora da guerra civil que se seguiu e que durante 27 anos, até 2002, devastou Angola e causou 300 mil mortos, nos confrontos militares com o FNLA e, sobretudo, com a UNITA.
No auge da guerra, o ministro tomou a pasta do Planeamento e Desenvolvimento Económico e não demorou a ser figura central do MPLA. Com a morte do primeiro presidente de Angola, Agostinho Neto, em setembro de 1979, José Eduardo foi investido presidente da República Popular de Angola e, por inerência do cargo, chefe das Forças Armadas.
Corrupção
Nessas últimas décadas do século XX, o poder de José Eduardo dos Santos só não foi absolutíssimo porque a UNITA, liderada por Jonas Savimbi e apoiada pela África do Sul e pelos Estados Unidos, nunca lhe reconheceu legitimidade. E muito menos quando, em 1992, mesmo com supervisão das ONU, foi eleito presidente, mas sem maioria absoluta (49,57% dos votos, contra 40,07% de Savimbi). Apelando ao respeito pela Constituição, a UNITA exigiu segunda volta, que nunca se verificou, não reconheceu os resultados e voltou a pegar nas armas só caladas durante o período eleitoral.
A Guerra Civil terminou com a morte violenta de Savimbi e com a capitulação da UNITA. A paz foi celebrada em 2002 e José Eduardo dos Santos pôde, então, iniciar soberania sem rival e praticamente sem contestação. Os tímidos protestos nas redes sociais ou as vozes do jornalista Rafael Marques de Morais ou do rapper e ativista Luaty Beirão – imediatamente abafadas em processos judiciais – soaram quase sem eco, sobretudo entre uma Opinião Pública praticamente inexistente.
Associado à grande corrupção e ao desvio de recursos do Estado em benefício da família, José Eduardo do Santos parte sem nunca ter provado a inocência. Deixa 10 filhos, de cinco mulheres diferentes, e um valioso património a toda a prole Dos Santos, que incluiu participações em grandes empresas internacionais, através de paraísos fiscais e contas um pouco por toda a banca mundial, sobretudo na Suíça. Tudo num país um 70% dos compatriotas vivem com menos de dois dólares por dia.
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